sábado, julho 27, 2013

Os amanhãs que (já não) cantam

• José Pacheco Pereira, Os amanhãs que cantam [hoje no Público]:
    ‘Há uma obscena falta de vergonha incrustada no texto da moção de confiança que o Governo vai apresentar e que, por si só, é um retrato de uma política que, após as ingenuidades e ignorâncias iniciais, tem sido feita pelo dolo, para a manipulação e para o engano. Que haja intelectuais por detrás desta mistificação, faz-me confirmar uma velha desconfiança quanto à corrupção que a ambição traz ao pensamento. E mais: com esta moção, todos os membros do Governo passam a ser versões de Paulo Portas e a reverem-se no modelo de duplicidade sobrevivente do "irrevogável".

    O que esta moção nos diz é uma completa mistificação desde a primeira letra. Diz-nos que havia um ciclo político pensado em duas fases: uma, o cumprimento do "programa", outra, o desenvolvimento e o crescimento. A crise governativa das últimas semanas foi o rito de passagem, a perda da pele da serpente, que permitiu abandonar a velha pele, para fazer reluzir a segunda. Ou seja, ainda bem que houve esta crise, catártica na sua bondade, para podermos, limpos e lustrais, apresentar um "novo ciclo" aos portugueses. Nada disto é verdade, nem o "programa" foi cumprido, bem longe disso, nem este "novo ciclo" estava previsto nestes termos na programação governativa, nem as vítimas da "austeridade" podem esperar qualquer alívio, nem as vítimas que se seguem, as da "reforma do Estado", podem escapar à desvalorização do seu trabalho e ao desemprego. O programa real continua, o virtual vem aí. Só que não é para os mesmos.

    Cumpriu-se o "programa", apesar de nenhum dos números do défice e da dívida ter sido atingido? Podemos "regressar aos mercados"? Obtiveram-se os resultados miraculosos do "ajustamento"? Bem pelo contrário, o que Passos, Gaspar, Moedas e outros pensavam, em completa consonância com a troika, é que após uma varredela para o lixo da economia "ultrapassada", após o desmantelamento do Estado social, após a inversão das relações de poder na legislação laboral, após o fim dos "direitos adquiridos", depois da "libertação" da sociedade do Estado, após o "ajustamento" dos portugueses a viverem "de acordo com as suas posses", muito poucas, aliás, a economia exportadora, a economia desenvolvida tecnologicamente, a sociedade dinâmica dos "empreendedores" esmagasse os "piegas", sem que o Estado tivesse qualquer outro papel do que garantir a ordem pública e a hierarquia social estabelecida. O "arranque" viria da sociedade "libertada", e nunca jamais, em tempo algum, o Estado voltaria a ser "desenvolvimentista".

    (…)

    O "novo ciclo" do Governo, naquilo que não é pura sobrevivência eleitoral, mas discurso de feiticeiro, serve para reciclar a linguagem do poder aos mesmos interesses de sempre. Mas a sua fragilidade é a mesma do discurso do "rigor orçamental". É mais agradável de ouvir, mais enleante, leva o PS à ilharga, foge da agressividade militante da engenharia utópica Passos-Gaspar, mas destina-se a manter o mesmo círculo de ferro que captura a democracia portuguesa por um establishment financeiro e de grandes empresas nacionais (cada vez menos) e estrangeiras, e de uma elite que aceita servi-las e aceita os seus limites de fogo daquilo que se pode ou não fazer.

    Visto de longe, sanitariamente de longe, este Governo, para se manter, fez todos os tratos com Cassandra e abriu todas as caixas de Pandora. É só esperar pelos resultados do "novo ciclo".’

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