segunda-feira, setembro 23, 2013

António Ramos Rosa (1924-2013)

      Poema dum funcionário cansado

      A noite trocou-me os sonhos e as mãos
      dispersou-me os amigos
      tenho o coração confundido e a rua é estreita
      estreita em cada passo
      as casas engolem-nos
      sumimo-nos
      estou num quarto só num quarto só
      com os sonhos trocados
      com toda a vida às avessas a arder num quarto só
      Sou um funcionário apagado
      um funcionário triste
      a minha alma não acompanha a minha mão
      Débito e Crédito Débito e Crédito
      a minha alma não dança com os números
      tento escondê-la envergonhado
      o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
      e debitou-me na minha conta de empregado
      Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
      Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
      Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
      Soletro velhas palavras generosas
      Flor rapariga amigo menino
      irmão beijo namorada
      mãe estrela música
      São as palavras cruzadas do meu sonho
      palavras soterradas na prisão da minha vida
      isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
      num quarto só
        António Ramos Rosa

Morreu hoje.

3 comentários :

Anónimo disse...

Merecido. Gosto muito da poesia de Antonio Ramos Rosa, um grande poeta que nunca se pôs em bicos dos pés.

Como se diz que dizem os anarquistas, Morreu um poeta , uma garrafa de vinho para esta mesa.

ana disse...

in Viagem através duma Nebulosa. Gosto muito deste poeta.

Rosa disse...


Um grande poeta que nos deixa...fica-se sempre mais órfão...