• Ricardo Cabral, Pós-troika sem troika? [hoje no Público]:
- ‘Discute-se já há algum tempo o pós-troika baseado no mito de que através dos programas de ajustamento Portugal será capaz de deixar de necessitar de ajuda externa, encetando um processo de regresso aos mercados. Contudo, na realidade, o país está cada vez mais dependente da troika.
De facto, dos 387 mil milhões de euros de dívida externa bruta no final do 1.º trimestre de 2013, quase 40%, mais de 150 mil milhões de euros (cerca de 90% do PIB), eram empréstimos do BCE, FMI ou União Europeia ao Estado e ao Banco de Portugal. No final do programa de ajustamento, em Junho de 2014, o financiamento pelo sector oficial internacional representará mais de 100% do PIB.
Uma parte significativa deste montante é utilizada para financiar dívida pública, directa ou indirectamente através da banca nacional. Esta dívida está fora dos mercados, pelo que as necessidades de financiamento do Estado português nos mercados financeiros internacionais têm sido relativamente diminutas.
No que se refere à dívida pública só uma fracção - 75 mil milhões de euros, pouco mais de um terço do total da dívida directa do Estado - é transaccionada nos mercados. Uma parte significativa desta é detida pela banca e companhias de seguros nacionais e pelo Fundo de Estabilização da Segurança Social. Não obstante isso, a dívida pública a 10 anos transacciona-se a taxas próximas de 6,5%.
A estratégia da troika e do Governo para o pós-troika é aparentemente simples. Um programa de austeridade permanente sem precedentes, para que: o Estado passe a gerar excedentes primários (receita menos despesa sem juros) sistemáticos e muito elevados; e o país passe a registar excedentes externos sistemáticos e significativos. Tais excedentes não permitiriam pagar a dívida. Permitiriam somente pagar os juros devidos pela dívida pública e pela dívida externa.
Qualquer um destes objectivos é irrealista. Desvios substanciais face ao previsto colocarão a estratégia da troika e do Governo em causa, como ocorrido nos últimos dois anos - ou seja, será na prática impossível ao país autofinanciar o pagamento dos juros sobre a dívida pública e a dívida externa existentes.
Mas a estes dois desafios olímpicos soma-se a dificuldade de refinanciar o stock de dívida existente à medida que se vence. Se os investidores internacionais se recusarem a refinanciar essa dívida, Portugal seria - não obstante toda a austeridade orçamental que possa vir a realizar - obrigado a entrar em incumprimento, porque seria incapaz de amortizar a dívida que se vence.
A estratégia da troika e do Governo para responder a este terceiro desafio é igualmente simples sem deixar de ser, no entanto, arriscada. Consiste em pedir emprestado um ano antes de os fundos serem necessários para amortizar a dívida. Por exemplo, em 2014, as necessidades de financiamento do Estado português serão, se o défice público for o previsto (i.e., já com o corte de 4 mil milhões de euros de despesa), de cerca de 21 mil milhões de euros.
Deste montante, as tranches do empréstimo da troika que irão ser transferidas até Junho de 2014 e o pré-financiamento realizado pelo Estado português em 2013 asseguram cerca de 13 mil milhões de euros, pelo que o Estado terá de obter financiamento nos mercados de cerca de 8 mil milhões de euros. Metade desse montante fica assegurado com o recurso aos capitais do Fundo de Estabilização de Segurança Social, que o ex-ministro de Estado e das Finanças, em despacho conjunto com o ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, determinou que passaria a poder ser investido até 90% em dívida pública portuguesa - libertando cerca de 4 mil milhões de euros desse Fundo para compras dessa dívida.
Assim, o Estado português só necessitaria de se financiar em cerca de 4 mil milhões de euros em 2014, sendo provável que tente pré-financiar esse montante já em 2013. O Estado poderá dessa forma ser capaz de evitar o incumprimento em 2014.
Seguindo a mesma estratégia, em 2014, tentaria pré-financiar os cerca de 20 mil milhões euros que constituem as necessidades de financiamento previstas para 2015. E adoptaria procedimento similar nos anos seguintes.
Ora, esta estratégia da troika e do Governo tem custos. Para além dos já amplamente reconhecidos custos macroeconómicos e humanos de uma estratégia orçamental de duríssima austeridade permanente, noto que os custos financeiros de tal estratégia de regresso aos mercados são elevadíssimos: (1) o pré-financiamento de 20 mil milhões de euros, um ano antes do necessário, custaria cerca de mil milhões de euros por ano em juros, se se assumir, de forma optimista, uma taxa de juro da dívida de médio e longo prazo de 5%; (2) acresce que as taxas de juro a que o Estado se conseguirá financiar nos mercados serão muito mais elevadas do que as taxas a que Portugal estava habituado antes de 2010, dado o risco e o rating "lixo" da dívida da República. Daí resultará um aumento adicional da despesa com juros.
Mas além de dispendiosa é uma estratégia insustentável e perniciosa. Porque, em 2014, obriga a usar o capital do Fundo de Estabilização da Segurança Social, no que se afigura ser uma violação do direito de propriedade dos actuais e futuros pensionistas e uma violação do dever fiduciário dos responsáveis políticos e gestores do Fundo face aos actuais e futuros pensionistas. Em 2015, obrigaria à venda de outra qualquer "prata da casa" ainda disponível.
Pelo que, mesmo se for possível evitar o incumprimento em 2015, em 2016 será quase certo, após todos os sacrifícios que se revelarão inúteis e toda a despesa desnecessária com juros.
Tal insucesso terá consequências muito gravosas para o país. É provável que Portugal se veja obrigado a sair do euro nessa altura e não disporá de divisas para assegurar o regular funcionamento da sua economia (e.g., financiar importações de combustíveis). Verá ainda o regresso aos mercados financeiros internacionais cortado durante muitos anos. Terá de enfrentar litigância jurídica em diversas praças internacionais, porque entretanto uma parte significativa da dívida será regida por lei que não a portuguesa.
Em conclusão, se o país prosseguir com a estratégia actual, não existirá um pós-troika sem troika, no sentido em que o país terá de solicitar financiamento externo - um segundo resgate ou um programa cautelar - que virá associado a mais austeridade, i.e. novos memorandos explícitos ou implícitos. Mas mesmo com tal ajuda externa a dinâmica de crescimento da dívida pública e da dívida externa é tal que a entrada em incumprimento é meramente uma questão de tempo. Um novo resgate ou um programa cautelar apenas prolongam a agonia do país antes da entrada em incumprimento. É pois urgente mudar de estratégia, para que Portugal pós-troika seja um Portugal sem troika.’
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