sábado, outubro 11, 2014

Mandato cumprido


• Augusto Santos Silva, Mandato cumprido:
    «Os leitores talvez estejam surpreendidos com o súbito afrouxamento da vigilância das instituições credoras e das autoridades europeias sobre o desempenho português.

    O défice orçamental de 2014 não ficará abaixo dos 4,8%. A dívida pública cresceu quase 40 pontos percentuais face a 2010. O desemprego está mais alto e o crescimento é mais baixo do que o objetivo fixado. O défice externo não foi corrigido. O orçamento navega à vista, entre cortes de salários, pensões e transferências sociais e aumentos de taxas e impostos. O ataque às rendas excessivas foi brando e o saneamento financeiro das empresas públicas de transportes está por concluir. E, contudo, parece que Bruxelas, Frankfurt e Washington deixaram de estar muito preocupadas. Até há quem já veja "margens", "folgas" e outras delícias semelhantes......

    Como é isto possível? Como se explica que os mesmos que nos obrigaram a castigar sem contemplações um povo e uma economia inteira, porque tínhamos um problema de finanças públicas, se mostrem agora tão benevolentes, quando, em certos aspetos, o problema até se agravou?

    Parte da resposta está aqui: ao contrário do que disse, a troika sabia que a causa do problema português não era apenas, nem sobretudo, interna. A partir do momento em que a intervenção do Banco Central Europeu pôs alguma ordem nos mercados financeiros, os juros das dívidas públicas desceram expressiva e consistentemente para valores razoáveis. Os Estados deixaram de ser presas fáceis da especulação. A "crise das dívidas soberanas" perdeu dramatismo.


    Mas a outra parte da resposta é política. E essa é a parte mais importante.

    O mandato implícito no chamado programa de ajustamento era este: alterar o equilíbrio político-económico, a favor do capital; embaratecer o fator trabalho, diretamente e através da redução significativa da provisão de bens públicos, fosse na educação, na saúde ou na proteção; e acelerar a integração subalterna de Portugal na economia internacional, através da privatização do que restava de empresas públicas e da renúncia a qualquer estratégia política de defesa dos interesses e centros de decisão nacionais.

    Este mandato não colhia nem colhe o apoio de todas as forças que contam na Europa. Pelo contrário, é motivo de uma tensão que está à vista. Paris não pensa o mesmo que Berlim, Roma não pensa o mesmo que Helsínquia, Estrasburgo não pensa o mesmo que Frankfurt, que por sua vez já não pensa o mesmo que Berlim. E assim por diante. Nem esse mandato de destruição do tecido económico e social pode ser imposto tal qual, contra um certo nível de oposição dos países. A Espanha e a Itália resistiram-lhe com estrondo e sucesso, à França e à Holanda nem se sonhava aplicá-lo, a Irlanda soube adequá-lo a si pelo menos tanto quanto se ajustava a ele.

    Mas Passos Coelho esteve sempre do lado dos que forçavam este mandato, sempre se declarou convicto da sua razão e executor zeloso das suas consequências práticas. Teorizou, aliás, abundantemente sobre as "responsabilidades" do Estado social na anemia económica portuguesa, o "arcaísmo" da Constituição e a necessidade de "ir mais além da troika". O seu Governo falhou no défice orçamental, no défice externo, na dívida, na redução da despesa, na moderação fiscal. Mas não falhou no enfraquecimento brutal das condições de vida e do poder negocial dos trabalhadores. Não falhou na desvalorização radical do Estado. Não falhou na rutura do contrato social. Quase não falhou nas privatizações a eito e sem critério. E nem se esqueceu de faltar à defesa dos interesses nacionais, assistindo passivamente (para dizer o menos) à destruição de pilares da economia nacional, como os casos da TAP, do BES e da PT emblematicamente ilustram.

    A troika recompensa-o agora, encolhendo os ombros a mais um ano de insucesso nas finanças públicas. É uma triste recompensa? Pois é. Mas o prémio tinha de ser tão miserável como o mandato imposto, cumprido e premiado.»

2 comentários :

Evaristo Ferreira disse...

Augusto Santos Silva é um mestre na desconstrução da narrativa do passismo/partido do táxi.
Faz bem o CC ao transcrever aqui o trabalho do professor ASS. Este blogue dá meças a qualquer "jornaleiro" de investigação desta classe.

Anónimo disse...

E depois de privatizar monopólios como a REN e a ANA, e outras empresas emblemáticas como EDP e CTT, quais traidores ainda vão fazer o mesmo à Aguas de Portugal e à TAP e queriam também entregar a Caixa Geral de Depósitos e a RTP.
Quantas mais PT iremos ver cair, neste triste país?!