Até amigos meus, que, em regra, não se deixam encantar com a espuma dos dias, se mostram seduzidos pelas propostas que João Cravinho apresentou para combater a corrupção. Não tenho, no entanto, a certeza de que todos os defensores das propostas de Cravinho as conheçam.
Não está em causa João Cravinho, que prestou inestimáveis serviços à República. Vejo-o como um democrata e um humanista, um homem íntegro que procurou desempenhar proficientemente as funções públicas que lhe foram confiadas. Mas a verdade é que as propostas que tem apresentado põem verdadeiramente em causa o Estado de direito democrático e os direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição.
Vejam-se, a título de exemplo, duas medidas propostas por Cravinho:
• A equiparação de todas as formas de corrupção; e
• A criação de um crime de enriquecimento ilícito.
São, de facto, dois verdadeiros disparates. Veja-se porquê:
1. Pretende Cravinho equiparar todas as formas de corrupção, o que é inédito na Europa. Assim, pretende equiparar a corrupção para a prática de acto ilícito à corrupção para a prática de acto lícito.
Segundo Cravinho e os ignaros gurus que o aconselharam, tanto faz alguém corromper um funcionário para que este lhe passe uma certidão falsa que “comprove” que ele é doutor em economia, sem o ser, como alguém corromper um funcionário para ele lhe passar essa mesma certidão, sendo de facto doutor em economia, num prazo mais curto.
Será que estas situações devem ser equiparadas? É claro que só uma dose monumental de falta de senso e de falta de sentido de justiça aponta para uma resposta afirmativa.
Na criminalização da corrupção, pretende preservar-se a isenção da Administração Pública, que é posta em causa muito mais gravemente quando tem por objecto uma actividade ilícita.
Por isso mesmo, a doutrina penal chama à corrupção para a prática de acto lícito “corrupção imprópria”. Ela é punida na lei portuguesa, mas é claro que não merece pena tão grave como a que é estabelecida para a “corrupção própria”.
2. A segunda proposta de Cravinho, de criação de um crime de enriquecimento ilícito, assenta numa presunção de culpa que viola o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.
Ora a presunção de inocência não constitui um capricho nacional. Corresponde a um importante corolário do Estado de direito democrático e dos regimes políticos liberais. Não é por acaso que os Estados europeus não consagram este crime.
Em contrapartida, a República Popular da China tipifica-o. Mas será de preferir o humanismo chinês, com pena de morte à mistura, à tradição da “velha” Europa? E convém reparar que o tal crime de enriquecimento ilícito é punido em Macau, por exemplo, com prisão até dois anos, e, segundo a proposta de Cravinho, deveria ser punida em Portugal com pena de prisão até oito anos.
Por fim, o crime só seria praticado por titulares de cargos políticos, numa cedência irresponsável à demagogia e ao populismo, que não deixará de fazer muito mal, a prazo, à democracia portuguesa.
O Eng. João Cravinho não merece, pela inteligência e pela idade, receber conselhos. Mas deixo-lhe apenas um: acredite que os fracassos e as misérias da luta contra a corrupção se devem muito mais à incompetência de alguns que se põem em bicos de pés para se arvorarem em campeões da moralidade do que ao texto das leis. Invocar a necessidade de mudar as leis sempre foi um excelente pretexto dos incompetentes.
3 comentários :
O último parágrafo aplica-se inteiramente ao Sr Cravinho:
Ministério das Obras Públicas/JAE...decisão NAER Lisboa-Ota...
JoseM
Quando os lobbys uivam...
Outros já uivaram e preparam-se para uivar , 4000 esperam pela "espuma", ou melhor, a boca cheia de espuma de tanto esperar -
Ze Boné
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