quarta-feira, julho 21, 2010

"Eu não tenho nada a ver com o bem-estar e capacidade produtiva dos meus concidadãos, deixem-me a mim e à minha carteira em paz!"

É com alguma perplexidade que vejo vários rivais políticos de Passos Coelho aceitarem alguns dos seus pressupostos às críticas que faz à actual Constituição. A verdade é que a proposta de revisão constitucional do PSD que pretende acabar com a saúde e a educação tendencialmente gratuitas para levar a que cada um as financie segundo as suas capacidades é uma falácia que, antes de ser criticada na sua substância, deve ser, isso sim, desmontada.

Passos Coelho está a brincar com as palavras e sabe-o perfeitamente. Primeiro, porque nenhum serviço é gratuito (mesmo que “tendencialmente”, “parcialmente”, ou o advérbio de modo que quiserem arranjar); todos os serviços são, naturalmente, pagos, uma vez que ninguém anda a trabalhar de graça. Os serviços públicos são, sim, como dizem os americanos, free at the point of delivery. Quando se diz que os serviços públicos devem continuar a ser de acesso geral e universal, é isto que se está a defender. Isto mostra como a outra grande ideia inovadora de Passos Coelho – de que cada um deve pagar em função das suas capacidades – é totalmente estéril, uma vez que já é isso que acontece actualmente. Uma vez que os serviços públicos são financiados por impostos, seja por via do rendimento (impostos directos), seja por via do consumo (impostos indirectos), cada um já contribui em função daquilo que recebe (os que ganham menos consumirão também menos, em valores absolutos), a lógica de que os serviços devem ser financiados atendendo à capacidade contributiva (em sentido lato) de cada um é, efectivamente, um pilar do nosso sistema de financiamento de serviços públicos.

Quais são então, na prática, as diferenças entre financiar serviços via impostos – como são hoje - e financiá-los apenas se e quando eles forem prestados aos utilizadores?
    1. O financiamento via impostos significa que os serviços são pagos por todos para o uso de todos, por igual. A lógica é a da cidadania e dos direitos sociais, não a da necessidade última que, no limite, só afecta os indigentes. O significado elementar deste mecanismo é que pertencemos todos à mesma sociedade, que há algo que nos une e nos é comum enquanto cidadãos. A direita gosta muito de dizer que os direitos devem vir acompanhados de responsabilidades, mas é incapaz de reconhecer que um sistema de serviços públicos financiados por impostos garante isso mesmo: em particular, os direitos de todos têm, como contrapartida, a obrigação de todos em financiar bens que têm uma dimensão pública – e não apenas privada – muito significativa.

    2. Isto significa que há uma espécie de véu de ignorância no financiamento dos serviços públicos por imposto. Quem os financia, não controla para onde vai o dinheiro. Esta dimensão pode trazer problemas, e muitas pessoas acham que o seu dinheiro é mal usado; formas mais transparentes de alocar os recursos na prestação de serviços públicos são necessárias e bem-vindas, sem que isso implique violar a sua filosofia e funcionamento básicos. Este ponto é muito importante, na medida que ele garante o seu carácter verdadeiramente público, solidário, e redistributivo. Por exemplo, eu, com pouco menos de 30 anos, financio o sistema nacional de saúde desde que sai da faculdade e trabalho; porque – por sorte - praticamente nunca tive de recorrer ao sistema, andei estes anos todos a pagar tratamentos de outros. Faço-o com orgulho cívico, embora admita que muitos achem isto ultrajante e ineficaz. Os que querem aplicar o princípio do utilizador-pagador à saúde (ou à educação) devem dizê-lo explicitamente, e assumir a ruptura ideológica muito séria que estão a defender: o que essas pessoas nos estão a dizer – e Passos Coelho já o defendeu muito abertamente – é que consideram essas áreas do foro quase exclusivamente privado, e que, enquanto cidadãos, não têm qualquer responsabilidade no financiamento do que a maioria, felizmente, ainda considera como bens públicos, e que todos devem financiar, beneficiem deles directamente ou não. A filosofia de Passos Coelho apenas sanciona o egoísmo mais elementar; diz-nos que o indivíduo A ou B não tem nada que – não tem qualquer responsabilidade enquanto cidadão - andar a ajudar a pagar a saúde ou a educação de B ou C.

    3. O véu de ignorância não existe apenas para quem financia, mas também para quem presta os serviços. Este véu de ignorância é deliberado, e existe para que os prestadores não possam discriminar – idealmente, claro - quem os usa. No hospital, numa sala de aula, ou num guichet da administração pública, é o cidadão que o médico, professor ou funcionário tem pela frente, não um consumidor como os outros. Enquanto cidadão, a capacidade económica do indivíduo é colocada entre parênteses e todos têm direito a um serviço de igual qualidade; como consumidor, este requisito cai: cada um tem apenas direito à qualidade que o seu bolso pode pagar.

    4. A ideia de que o Estado não tem dinheiro para pagar estes serviços públicos e que, por isso, está “falido”, é falso ou, em alternativa, totalmente demagógico. A ideia de que o Estado está “sem dinheiro” é popular nestes tempos de crise, mas nada nos diz que, com os ajustamentos necessários temporários – ganhos de eficácia e eficiência a que todos somos sensíveis -, estes gastos não voltem a padrões de segurança que garantam a sua sustentabilidade a médio prazo. A diferença entre quem defende efectivamente o Estado social, e quem o diz por puro cinismo e oportunismo – como agora faz Passos Coelho - é a diferença entre os que pretendem introduzir mudanças para garantir o essencial, e aqueles que não querem introduzir mudanças nenhumas, para poder argumentar a seguir que o essencial não é sustentável. É por isso que o PSD sempre foi contra qualquer reforma nas carreiras dos professores, sabendo que o grosso do orçamento da educação está aqui; se o PSD conseguir mostrar que o sector é irreformável e caro – o que nem é o caso, e para isso basta comparar as estatísticas portuguesas com as de outros países europeus neste sector -, então pode vir dizer que tem que sofrer uma revolução. Para tal, só tem que bloquear toda e qualquer reforma, nem que para tal tenha de se colocar ao lado do PCP e do BE. Foi isto que fez desde 2005.
Por fim, a grande falácia das propostas de Passos Coelho para a saúde e para a educação é que ficariam mais baratas. É muito importante todos perceberem que esta conclusão é completamente demagógica, e se as suas propostas virem alguma vez a luz do dia, é elevada a probabilidade dos portugueses virem a pagar mais e não menos pela sua educação e cuidados de saúde. Como é improvável que Passos Coelho aceite que o Estado desinvista por completo nestas duas áreas e as entregue totalmente às escolhas exclusivamente individuais, então o Estado tem de gastar dinheiro com estes serviços. Se não financiar estes serviços directamente via impostos, então terá de financiar – mesmo que haja um co-pagamento pelo utilizador – através de deduções fiscais. Ou seja, o Estado ajudará os portugueses a pagar a saúde e a educação através de despesa fiscal. Esta é, obviamente, despesa como qualquer outra (através, por exemplo, de créditos fiscais). Perversamente, esta opção até pode fazer descer o peso do orçamento público nestas áreas nas estatísticas internacionais, uma vez que estas só contabilizam o financiamento público directo; deduções e benefícios fiscais ficam de fora do radar estatístico, e dar com essa ideia de que o Estado anda a gastar menos com a educação e com a saúde. Na maior parte das vezes, isto é falso: alterações no mecanismo de financiamento não tornam os sistemas mais baratos, e sobretudo não representam gastos mais baixos para os bolsos dos cidadãos.

Resumindo: é tudo menos óbvio que o financiamento indirecto da saúde e da educação pelo Estado saísse mais barato aos contribuintes portugueses. E já nem falo dos custos de transição, porque ou um Governo de Passos Coelho reduzia à bruta os custos com os sistemas de educação e de saúde de um dia para o outro, ou então os portugueses andarão muito tempo a pagar estes via impostos, e ainda a pagar do seu próprio bolso a dimensão privada dos serviços que Passos Coelho quer estimular. Sobre isto, o líder do PSD dirá: já são muito que estão sujeitos a essa “dupla tributação”. Se são “muitos” ou “poucos”, tudo depende, mas talvez seja de concluir que Passos Coelho não conhece o país onde vive e confunde o público das suas tertúlias com a população portuguesa, como se a maioria desta fosse utente da CUF e tivesse os filhos nos Maristas. Uma sociedade livre não proíbe os serviços privados: apenas diz que aqueles que querem dele usufruir – e que os coloca numa posição mais privilegiada em relação aos que não têm recursos económicos para tal – devem pagar para isso. Uma sociedade que protege os seus bens públicos – e não apenas os mais pobrezinhos -, e que investe no bem-estar e capacidade produtiva de todos – e não aqueles que já têm recursos no berço - não incita os seus cidadãos a fugir às suas responsabilidades sociais e cívicas. A mensagem de Passos Coelho é esta: "eu não tenho nada a ver com o bem-estar e capacidade produtiva dos meus concidadãos, deixem-me a mim e à minha carteira em paz!"
    Contributo do Pedro T.

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