sexta-feira, julho 16, 2010

Leituras [3]

• Miguel Sousa Tavares, Histórias exemplares:
    Mas o que é deveras interessante é o Acto II deste enredo. No Acto II, José Sócrates apresentou também queixa-crime contra os responsáveis pelo "Jornal de Sexta" que, semanas a fio, pegaram nas declarações de um tal Charles Smith, gravadas particularmente, dizendo que, em tempos, o então ministro do Ambiente teria sido corrompido para autorizar o Freeport de Alcochete. Declarações que a polícia inglesa, que as obteve em primeira mão, já havia investigado e arquivado por concluir serem infundadas. Dizem os responsáveis do "Jornal de Sexta" que essa divulgação foi apenas a de um "facto não desmentido". Não é verdade: nem é facto, nem é não desmentido. Facto é apenas que o escocês disse aquilo, mas, como se entende facilmente, o facto que interessa não é esse, mas sim a eventual corrupção de José Sócrates. E isso é o que o MP procura afanosamente provar há seis anos, sem o conseguir nem desistir. E José Sócrates desmentiu várias vezes a acusação, verbalmente e por escrito e onde o pôde fazer - visto que no próprio processo nem sequer foi ouvido, ao menos como testemunha, até hoje. Aliás, nem se compreenderia como é que um chefe de Governo, confrontado com tais suspeitas, se conseguiria manter em funções sem as desmentir.

    Ora, sucedeu que, aparentemente pelas mesmas razões invocadas pelos jornalistas, o delegado do MP que recebeu a queixa por difamação interposta por José Sócrates, entendeu arquivá-la por falta de fundamento. E, esta sim, é uma decisão que já não pode passar sem comentário. É evidente que se alguém, mesmo que desconhecido e sem nada que abone a sua credibilidade, acusa uma figura pública altamente colocada da prática de um crime (e logo um primeiro-ministro de crime de corrupção!), isso é notícia. Mas qualquer jornalista também sabe que é uma notícia a ser tratada com todas as cautelas e todos os sinais de alerta ligados. Porque, sendo figura pública, e, para mais, governante, é muito fácil que a divulgação desadequada da notícia permita uma condenação pública prévia que, depois, já não há arquivamento nem absolvição que a consigam anular, em termos de opinião pública. O que se iria discutir, pois, não era o 'facto indesmentido' de existir aquela gravação com a acusação do senhor Smith: era se a forma como ela foi insistentemente divulgada pelo "Jornal de Sexta" e sistematicamente alimentada e acrescentada com outros elementos saídos do processo, pelo método habitual, e todos eles sem hipóteses de contraditório por parte do visado, constituiu ou não em si mesma uma forma de difamação agravada. Ou seja, se se tinha apenas tratado o assunto de forma objectiva e informativa ou se a forma do seu tratamento tinha ultrapassado essa fronteira e se tinha também tornado parte de um eventual crime de difamação. E isso julgar-se-ia ouvindo o testemunho dos profissionais do ofício, a opinião de peritos e comparando a doutrina e a jurisprudência existentes. Eu só me ocorre perguntar ao magistrado do MP que produziu este despacho de arquivamento o que pensaria se, semanas a fio, um programa de televisão divulgasse uma acusação de um seu vizinho dizendo que o tinha corrompido? Será que não se sentiria difamado e não quereria reparação, ou era-lhe indiferente?

1 comentário :

Rosa disse...

Uma das vozes mais independentes e desassombradas...MST, jornalista e escritor, é igualmente licenciado em Direito... Sabe, portanto, do que fala. Ao contrário de muitos que, não possuindo currículo tão extenso, se arrogam em especialistas de matérias em que a ignorância ou a má-fé(ou ambas) produzem análises e conclusões com resultados perfeitamente divergentes da realidade.