sábado, setembro 08, 2012

Um pingo doce na guerra colonial

O debate sobre o brinde de Verão do Expresso, que tem animado os leitores do Público, passou da secção de opinião para a da cultura. Hoje é a vez do historiador Diogo Ramada Curto, com um artigo intitulado Por um debate de ideias num panorama sem crítica, do qual se reproduz uma parte:
    ‘(…) a politização em que este mesmo debate corre o risco de se encerrar merece ser recentrada, a bem de uma dimensão analítica. É que o debate em curso sobre a História de Portugal de Rui Ramos, desde que reconduzido aos aspectos mais propriamente analíticos, afigura-se extremamente profícuo. A partir de um caso concreto, será possível exemplificar como proceder em relação a outras partes da obra.

    O rigor com que se pretende tratar o fim do período colonial, desde o início da guerra até à descolonização, traduz-se no tratamento objectivo de uma série de factores: demográficos, económicos, sociais, políticos, ideológicos e culturais. O equilíbrio deste travejamento, com que se ensaiam explicações de carácter global e se lançam hipóteses explicativas, é extensivo ao conjunto da obra. Corresponde, aliás, a um dos aspectos mais atractivos desta História de Portugal, que foge a modas e a ortodoxias de vulgata: guiada por problemas, aos quais pretende responder através da consideração de uma pluralidade de factores, atenta a uma pluralidade de ritmos de mudança temporal e preocupada em revelar os seus próprios instrumentos de prova. Mas onde melhor se descobre a sensibilidade de Ramos -tal como, noutras partes da obra, de Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro - é na tentativa de tratar conjuntamente as auto-representações da época e os factores de carácter mais estrutural que caracterizam cada período. Claro que o reconhecimento destes aspectos positivos de conjunto não impede a formulação de críticas e a discussão, insista-se, em termos analíticos da obra em causa. Pelo contrário, o exercício da crítica é, em si mesmo, um acto de respeito pelo trabalho de síntese desenvolvido pelos autores.

    Rui Ramos sintetiza do seguinte modo o que se passou com a guerra em África: "Obscura e pouco mortífera". Obscura, porque não comparável às guerras do Vietname, do Médio Oriente ou à Guerra Civil da Nigéria. Pouco mortífera, uma vez que, em 1961, com 40.000 soldados foi possível conter "a insurreição com uns escassos 167 mortos" e, ao longo dos anos de guerra, o número de mortos em combate nunca excedeu os 3 por mil soldados (em comparação com o Vietname, que rondou os 15 por mil). Este dado é, aliás, considerado de tal modo importante que "determinou tudo", pois teria levado "os americanos que em 1961 pareciam decididos a expulsar Portugal de África" a rever a sua política. Porém, há um outro dado, contabilizado mais adiante, que importa reter: o número de mortos do "inimigo" foi vinte vezes superior. Frente a esta desproporção, como se poderá analiticamente argumentar - numa História que se pretende arredada de uma perspectiva nacionalista - que a guerra foi pouco mortífera? Por que razão, numa análise pejada de comparações, esta desproporção não fica sujeita à mesma verificação? Tudo isto para não falar da necessidade de se reflectir sobre os usos e sentidos destes exercícios comparativos.

    Ligadas ao argumento de que a guerra foi "pouco mortífera" encontram-se duas outras ideias, apresentadas em conexão: "O aumento da população portuguesa em África prova o reduzido impacto das guerrilhas". Mas como se poderá argumentar que as guerrilhas não tiveram impacto, quando se referiu contraditoriamente, na página anterior, "o realojamento da população em "aldeamentos estratégicos", a fim de a subtrair à influência da guerrilha"? E, note-se bem, é o próprio autor quem reconhece não se ter tratado de um movimento populacional menor, pois "as novas aldeias abrangeram um milhão de pessoas em Angola e outras tantas em Moçambique". Frente a estes dados, não valeria a pena perceber melhor o que eram estes "aldeamentos estratégicos", resultado de migrações forçadas causadas quer pela guerra, quer pela atracção das grandes cidades, já envolvidas em lógicas de modernização? Seriam essas aldeias campos de trabalho? Seriam locais de recrutamento de contingentes de mão-de-obra móvel? A este respeito, por que razão está ausente, da série de factores em consideração acerca da guerra colonial, o trabalho forçado ou a questão dos contratados? E a questão racial, a começar pelo papel dos "calcinhas" (africanos considerados aculturados), por que razão não suscita nenhum comentário?

    Quanto ao aumento da população portuguesa em África, enquanto indicador do "reduzido impacto das guerrilhas" e da guerra em geral, os números citados não o confirmam, pelo menos em relação a Angola e Moçambique: entre 1945 e 1960, a população branca quase quadruplicou; enquanto nos quinze anos seguintes, de 1960 a 1974, apenas duplicou. Frente a este abrandamento da colonização, como se poderá argumentar que a guerra pouco interferiu no processo de colonização branca?

    A caracterização das tácticas adoptadas pelo Exército português é feita a partir de três grandes linhas: primeiro, seguindo os manuais de contraguerrilha, o Exército privilegiou as pequenas unidades de infantaria ligeira que procuraram "africanizar a guerra"; segundo, o Exército "tentou obter a simpatia da população, contribuindo para a melhoria do seu nível de "bem-estar""; terceiro, na ausência de recursos financeiros - apesar de não se deixar de reconhecer o peso da defesa nas despesas públicas, que chegou a ser em 1969 de 46% - Salazar sempre procurou ""baratear a guerra"". Tais linhas de análise correspondem a uma espécie de discurso oficial da época sobre a guerra. Onde cabem, neste âmbito, o uso do napalm, as políticas de aterrorização das populações, incluindo nelas o corte ritual de cabeças (uma técnica porventura de acordo com os baixos custos que se pretendiam, que mimetizava supostos rituais africanos?), e a coordenação entre a acção da PIDE (referida apenas por ter contado com a colaboração de informadores junto da direcção do PAIGC) e a acção psicológica?

    Se para Ramos a guerra de África foi um assunto internacionalmente "obscuro", uma tal irrelevância - ilustrada a partir das palavras de um diplomata norte-americano - não terá deixado de pesar no delinear de políticas coloniais. Assim, "a descolonização foi em Portugal, tal como a abolição da escravatura no séc. XIX, sobretudo uma questão de pressão externa". Pode-se concluir que, pelo menos internamente, a irrelevância internacional da guerra deu lugar a uma enorme relevância... E considerar que guerras coloniais envolvendo Estados europeus, da dimensão de Portugal, puderam ser irrelevantes internacionalmente, mas desencadear formas decisivas de pressão externa, é uma contradição. ‘

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