segunda-feira, dezembro 19, 2005

Abel Mateus: "O cartel das farmácias custa à economia cerca de 2% do PIB"

"Na semana em que realizou com a PJ buscas à Associação Nacional de Farmácias e chumbou outra operação de concentração, o presidente da Autoridade da Concorrência foi ao programa “Negócios à parte”, no canal 2, anunciar que outros cartéis estão a ser investigados. Revelou ainda que na Expo existiram concursos com preços “combinados” e, para prevenir novas práticas de “cambão”, já foi criada uma unidade de vigilância para as grandes obras públicas, como a Ota e o TGV.

A AC divulgou um estudo sobre a situação concorrencial nas farmácias e poucos dias depois surge uma rusga às instalações da ANF. Estes dois acontecimentos estão relacionados?
A Autoridade nunca confirma ou infirma qualquer busca para proteger as próprias empresas, pois não significa que essas empresas tenham cometido um ilícito. É apenas uma forma de recolher evidências.

Mas há ligação entre as buscas e um estudo?
Os estudos que fazemos são independentes dos processos. Decidimos avançar com o estudo ao sector, porque sentimos a necessidade de ver as condições concorrenciais e o que pode ser feito para o melhorar e beneficiar os consumidores. O sector das farmácias é o único que sobreviveu desse regime anacrónico do condicionamento industrial, uma vez que a legislação de base data da década de 60.

O que mais o surpreendeu neste diagnóstico?
O sector das farmácias, embora sendo eficiente e modernizado, tem barreiras à entrada cujo impacto é realmente surpreendente. A abertura de farmácias tem de ser autorizada pelo Estado e existem técnicas económicas que permitem avaliar o custo dessas barreiras — essencialmente, as margens de distribuição observadas e os valores dos trespasses. Se utilizarmos este último factor, atingimos 1,5% a 2% do PIB.

Está a dizer que a liberalização da propriedade implicava um ganho dessa dimensão para a economia portuguesa.
Exactamente. São os custos associados a um regime que está fechado à concorrência.

Se as buscas não têm nada a ver com o estudo, então qual é a sua utilidade?
Estamos a preparar uma recomendação ao Governo.

Essa recomendação é sobre o quê? As margens de lucro que estão fixadas? Ou também fala na questão da propriedade?
São dois temas importantíssimos. Por um lado, vamos procurar que os preços deixem de ser fixados e passem a ser preços máximos. Só assim é possível repercutir no consumidor descontos obtidos na distribuição. Quanto à reserva de propriedade, deve ser o único sector em que ela existe.

Em Espanha o regime não é semelhante?
Há uns países com regimes similares, mas nós somos aquele que tem maiores restrições se aliarmos a questão da propriedade a outra como os horários, os problemas de regulação, a necessidade de assegurar a viabilidade económica da farmácia – como é possível o Estado assegurar que, à partida, uma empresa nunca vai entrar em falência?!...

Este Governo, não obstante a guerra instalada com a ANF, já avisou que não vai liberalizar a propriedade das farmácias. Ainda assim, vai insistir nessa recomendação?
As recomendações que a AC faz param aí: procurar uma maior concorrência para o benefício dos consumidores. Se um Governo não o fizer, outros o farão. As nossas recomendações perduram ao longo do tempo. Isto não são experiências que se fazem em Portugal, mas inserem-se num movimento em toda a União Europeia.

Qual a eficácia das vossas recomendações? Nestes três anos já produziram resultados?
Sim e os consumidores já os notam: a abertura de mais unidades de distribuição, que tem contribuído para a baixa de preços: a possibilidade de comprarem gasolina nos supermercados, que também têm preços mais baixos, maior transparência na divulgação de preços nas gasolineiras. Tudo isto resultou de recomendações da AC. E está sobre a mesa a obrigação das operadoras de telemóveis de informarem sobre as modalidades de preços mais baixos.

Então, não tem razões de queixa do Governo, porque em regra as vossas recomendações são transpostas para a legislação.
Sim, penso que a taxa de sucesso é bastante boa.

Há uma recomendação que passou a lei e, ainda assim, não aconteceu nada. A venda livre dos medicamentos não sujeitos a receita médica não existe, porque os hipers dizem que não os conseguem adquirir, por supostas pressões das farmácias sobre os grossistas. Está a AC a investir este caso?
Pois, como lhe digo, sobre processos não posso falar. Apenas lhe digo que, numa economia de mercado, não pode haver boicotes ou recusas de venda. O mercado tem de funcionar e não pode ser reservado apenas a uma parte das empresas.

O maior cartel até hoje desmantelado também foi no sector da saúde, na indústria farmacêutica, onde se detectou combinação de preços em 22 hospitais espalhados um pouco por todo o território nacional. Há mais cartéis a serem investigados?
Há vários cartéis que estão a ser investigados. Mas não lhe posso revelar quais são porque, além de preservar o segredo de justiça, não posso acabar com o factor-surpresa. Em todas as economias, incluindo nos EUA, estão sempre a formar-se novos cartéis, porque esta prática aumenta significativamente os lucros das empresas à custa dos consumidores. Temos de estar sempre vigilantes e estarmos à espera que o Governo entretanto avance com uma proposta legislativa nesta área, que é o estatuto de clemência.

O estatuto de clemência é para proteger um arrependido, alguém que tenha participado no “esquema “ e, por qualquer razão, decida apresentar uma denúncia à AC.
Exactamente. Tanto nos EUA como na EU todos os processos de cartéis são baseados nesse estatuto. Quase que nem é preciso investigar.

O que acontece hoje a um “arrependido” que denuncia o cartel à AC? Está sujeito ao mesmo regime de coimas?
Não, porque na nossa lei penal é possível levar em consideração a colaboração que essa entidade teve com a AC.

É verdade que o processo das farmácias partiu de uma denúncia de alguém lá de dentro?
Sim, houve uma empresa que, de facto, colaborou com a Autoridade e veio até nós denunciar a situação.

Que consequências teve o processo do cartel de moagem?
Recorreram a tribunal. Mas há uma consequência que se observa, no cartel das moageiras ainda não temos dados novos, mas nas farmacêuticas os preços baixaram automaticamente na ordem dos 30% a 40%."

[In Jornal de Negócios de hoje]

4 comentários :

Anónimo disse...

LIBERALIZAÇÃO DAS FARMÁCIAS JÁ !

Rui Martins disse...

Cada vez mais a ANF se assume como um imenso polvo que sorve o Estado e indirectamente, todos nós... Até quando? Quanta da riqueza nacional é desviada para os cofres cheios destes senhores? 2% do PIB são muuuuitos milhões.

Espero que Sócrates mantenha a ofensiva. E compreendo cada vez melhor porque é que no seu discurso de tomada de possa escolheu este sector para começar uma limpeza nos polvos deste país.

AisseTie disse...

É animador o cenário de descartelização no sector. No entanto, há que ressaltar o facto de esta teia de interesses não foi construída nem no último mês, nem no último ano, nem sequer nos últimos 5 ou 10 anos. Há muitos interesses envolvidos, muita gente importante, estes senhores compram tudo, investigação, justiça, média, meios políticos. Há que esperar para ver os desenvolvimentos, isto por enquanto não é rigorosamente nada.
Pensando noutra óptica, na tão maravilhosa solução de desmantelamento do sector público e sua concessão à iniciativa privada, veja-se que do que esta notícia fala é precisamente desse maravilhoso mundo da esfera privada. O mercado no nosso país é ainda muito pouco desenvolvido ao nível das garantias de concorrência. Será lícito apontá-lo como solução universal ou, pelo contrário, admitir a utilidade de manter certos sectores estratégicos na esfera pública, fazendo as necessárias reformas, nomeadamente que o sector público seja coutada dos boys dos partidos? Se em economias em que a transição foi lenta, como EUA e Canadá, em que a tradição de mercado está bem presente, se verificou que há vantagens em manter certos sectores estratégicos na esfera pública e, como tal, se observou o movimento inverso ao da privatização que se defende para Portugal, não será, de todo, sustentável numa economia sem tradição de mercado e sem concorrência assegurada nem grupos económicos dinâmicos observar tal movimento de privatizações.

Anónimo disse...

Tem toda a razão o comentador acima, há coisas que um Estado digno desse nome, não aliena, não ignora, não deixa em mãos alheias.

No caso da Saúde e mais concretamente na comercialização e fabricação do medicamento. foi um fartar vinalagem.

A lembrar-me do Laboratorio Militar, completamente reequipado, de excelentes instalações, com excelentes medicamentos, deixados pelo estado fascista e destruídas pelas forças progressistas e revolucionarias, é o exemplo da "obra acabada".

esta "malta" tem a mania que somos um País rico e que podemos pagar progressões nas carreiras, reformas aos 45 anos a 100%, faltar ao trabalho que ninguem dá por isso e há gente a mais, tudo isso e muito mais, vai ter os dias contados.

Mais 10 toneladas de ouro vão ser vendidas, por favor, não gastem tudo em vinho