sábado, janeiro 20, 2007

Mafaldinha, again



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Cara Mafalda, continuemos, pois, a conversa, mantendo o método tópico (não vá mesmo algum leitor estar interessado na discussão):

1. Aquilo que eu disse sobre as relações entre religião e direito (e que a Mafalda não compreendeu) é que, podendo uma norma religiosa coincidir com uma norma jurídica, os dois planos devem ser distinguidos.

Para mim, o problema da Igreja Católica é confundir os planos religioso, científico e jurídico. Considera o valor da vida sagrado desde a concepção, o que apela a uma compreensão religiosa desse valor “sagrado”, e depois procura proteger a sacralidade através de sanções do Estado. Pelo meio, para dissimular, vai fazendo umas flores científicas inconsequentes.

A Igreja sustenta que existe vida desde a concepção. Mas a pergunta é: e daí? Volto a questionar: é por essa razão que um óvulo fecundado vale tanto como um ser nascido? É por isso que alguém que já morreu cerebralmente, mas mantém funções vitais, vale tanto como qualquer outra pessoa? Creio que a resposta a estas questões é evidente.

2. Distingamos então dignidade de eficácia penal. É claro que a vida intra-uterina é digna de tutela penal e continuará a merecer essa tutela se o “Sim” vencer. Mas não se confunda tutela penal com obrigatoriedade da intervenção penal. O direito penal constitui uma ultima ratio. O legislador, em regra, não é obrigado a criar crimes, como muito bem esclareceu Figueiredo Dias (ou Claus Roxin).

O direito penal rege-se pelo princípio da subsidiariedade, por força do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. Por tudo isto, não basta dizer que a vida intra-uterina é um bem jurídico digno de tutela para inferir que todos os casos de aborto devem ser punidos. O aborto negligente não é punido. A tentativa de aborto consentido não é punida. Já hoje, há casos de aborto não puníveis (previstos no artigo 142.º do Código Penal).

Quanto à eficácia, a conversa corre o risco de se basear em palpites ou impressões. A verdade é que o aborto clandestino tem sido praticado e não é punido. Portanto, a norma incriminadora não é eficaz e a sua consequência mais visível é provocar sofrimento, a doença e, por vezes, a morte às mulheres grávidas.

É por estas razões que eu gostaria de que o Estado e os adeptos do "Não" apostassem mais em políticas sociais de apoio à maternidade e menos em punições simbólicas. E que alguns adeptos do "Não" se não lembrassem só do valor da vida quando é convocado um referendo.

3. Os números relativos a interrupções da gravidez são impossíveis de obter com um mínimo de rigor, mas estou convencido de que a despenalização não contribuirá para agravar este flagelo (antes pelo contrário), com a vantagem de a interrupção poder ser, com a despenalização, medicamente assistida.

Quanto à liberdade e responsabilidade da mulher, em particular a transformação da mulher em objecto, reconheço o esforço da Mafalda. Mas é preciso mais do que esse esforço para convencer alguém que não seja néscio nem esteja distraído de que a mulher é mais livre e responsável se não puder escolher livremente assumir a gravidez durante as primeiras dez semanas e for punida no caso de a interromper.

4. A Mafalda continua a confundir o direito a constituir com o direito constituído e a política criminal com a dogmática penal.

Repito o que já lhe disse: a pílula do dia seguinte nunca é punida porque o aborto é um crime contra a vida intra-uterina, que, obviamente, não existe antes da nidação. Quando lhe disse isto, a Mafalda agitou-se e chamou-me legalista, porque manifestamente não compreendeu a diferença entre legalismo e princípio da legalidade (artigo 29.º da Constituição).

Reconheço que, agora, a Mafalda faz um esforço para explicar a não punibilidade da pílula do dia seguinte. Diz que o legislador pode delimitar temporalmente o âmbito da protecção do bem jurídico. Nem mais, Mafalda. Se o “Sim” vencer o referendo, o legislador continuará a fazer essa delimitação, alargando o prazo de duas semanas que a nidação demora para dez semanas de gravidez (na minha interpretação, contadas desde a nidação).

Neste discurso, Mafalda, prova-se que não é possível falar já hoje de um valor absoluto de toda a vida humana. E é bom não esquecer, como eu já havia referido, que a vida continua a ser protegida, durante as primeiras dez semanas de gravidez, contra abortos não consentidos.

E não se venha dizer, como alguém fez em comentário ao meu post anterio, que isso não prova nada, porque a bofetada consentida também não é punida. O aborto não consentido continuará a ser punido durante as primeiras dez semanas de gravidez mesmo que não provoque nenhuma ofensa à mulher, porque o bem protegido é a vida intra-uterina.

5. Minha cara Mafalda, não precisava de sublinhar para que eu veja que convive bem com o direito. Do que eu não tenho a certeza é de que o direito conviva tão bem consigo. Às vezes, há paixões não correspondidas.

No caso do aborto, independentemente de densificações e construções dogmáticas, a pergunta inicial é esta: a vida intra-uterina vale tanto como a vida depois do nascimento? Eu acho que não, mas a constituição irlandesa, baseada na doutrina da Igreja Católica, considera que sim. Qual é a consequência? No caso de conflito, tanta faz matar a mulher grávida como o feto, porque o médico estará sempre a cumprir um dever de valor igual (artigo 36.º do Código Penal). Eu acho esta conclusão aberrante. E a Mafalda?

6. Castanheira Neves e Pinto Bronze, inimigos jurados da língua portuguesa, defendem que pode haver analogia em direito penal? Eles e mais ninguém, não. Todos concordam que pode haver analogia em direito penal. Todos os raciocínios interpretativos têm até uma base analógica. O que não pode haver é aplicação analógica de normas incriminadoras. Não se pode punir uma conduta que não é prevista pela lei penal com o argumento de que é tão grave como outra que é expressamente prevista.

Portanto, o que eu disse, e repito, é que não se pode aplicar analogicamente uma norma que prevê um crime, para alargar o seu âmbito. E aí também toda a gente está de acordo, incluindo Castanheira Neves. A pequena diferença é que este professor de Coimbra chama à aplicação analógica interpretação contra a Constituição. Compreendeu, Mafalda?

Nota — Ao dactilografar este post, tive que suspender por momentos a “tarefa” e, quando regressei ao posto de trabalho, saltei para o parágrafo seguinte. Não incluí assim três frases (no ponto 6) que agora acrescentei para tornar o texto mais claro: “Todos concordam que pode haver analogia em direito penal. Todos os raciocínios interpretativos têm até uma base analógica. O que não pode haver é aplicação analógica de normas incriminadoras. Não se pode punir uma conduta que não é prevista pela lei penal com o argumento de que é tão grave como outra que é expressamente prevista.”

6 comentários :

Anónimo disse...

"Se o “Sim” vencer o referendo, o legislador continuará a fazer essa delimitação, alargando o prazo de duas semanas que a nidação demora para dez semanas de gravidez (na minha interpretação, contadas desde a nidação)."

Pode explicar melhor este seu raciocínio?

E que, cientificamente, o tempo de gestação começa a contar após a última menstruação e, portanto, o Miguel estará sugerir algo que não passa pela cabeça de ninguém - aborto até às 14 semanas...

Anónimo disse...

Senhor Dr. Miguel Abrantes

Considero o seu postal (bem como os demais, sobre o tema) muito bom .

Mas o que me obriga a vir aqui é a necessidade de assinalar positivamente o facto de não ter embarcado na histeria nacional do 'Sargento Luís' (passo passo, como diz o Senhor Primeiro Ministro, sempre vamos avançando : antes, foi o 'soldado' Luís !).
Isto, independentemente do que cada um pense do (des)acerto da qualificação jurídico-penal e da pena aplicada .

AA disse...

Muito bem, mais um bom post anti-corporativista.

Mafalda disse...

Caro Miguel,

li a sua adenda. A ideia de Castanheira Neves é mais ou menos essa. Simplesmente, e para clarificar, o cumprimento do princípio da legalidade criminal só é viável do ponto de vista dogmático e não metodológico, já que toda a racionalidade jurídica tem na sua base a analogia.

Também li o que me escreveu acerca do pároco de Castelo de Vide. Digo-lhe e volto a dizer: religião não se confunde com direito. O pároco falava para os fiéis e não do ponto de vista do ordenamento jurídico. Até porque, como deve perceber, a excomunhão não é uma pena do foro do Estado.

Quanto ao mais... respondendo-me só à noite, não sei quando poderei replicar. A partir de amanhã e até quinta feira vou estar distante do computador. Tentarei arranjar tempo para o fazer. Caso demore a resposta, não pense que desertei.

Cumprimentos e uma boa semana de trabalho,

Mafalda

Anónimo disse...

A discussão tem sido interessante do ponto de vista jurídico, mas como juristas saberão que há poucas verdades absolutas em direito. Talvez por isso tenha pena que o Miguel não consiga evitar o insulto fácil, parece-me que tentou com alguma sobranceria descredibilizar não a interpretação jurídica da Mafalda mas a própria e, algumas vezes nos seus posts desvirtuou argumentos usados pela sua interlocutora para que os seus saissem melhor na fotografia. Felizmente a Mafalda não acusou a recepção, mantendo por isso o nível da conversa.
Compreendo que muitas discussões se "ganhem" por pequenas picardias que retirem a frieza e razoabilidade ao "adversário", só acho que não lhe fica bem.
Volto no entanto a dizer, uma conversa interessante e no geral educada. Mas tem razão quando escreveu no blog do sim, sempre civilizada.

Anónimo disse...

"Volto a questionar: é por essa razão que um óvulo fecundado vale tanto como um ser nascido? É por isso que alguém que já morreu cerebralmente, mas mantém funções vitais, vale tanto como qualquer outra pessoa?"

Uma boa questão, a que a ciência dá uma melhor resposta (e é por causa dela que muita gente vota não...). Um (SIC) "óvulo fecundado" (já te explicaram que, depois da fecundação, se passa a chamar ovo...) se for viável, pode ainda não ser (SIC) "cerebralmente" activo (só o começará a ser depois das 6 semanas) mas não está morto cerebralmente (a morte cerebral é um estado irreversível). Como esta irreversibilidade não acontece com o ser humano que está a crescer no útero, os dois estados são absolutamente diferentes e incomparáveis...

Mas a ti pouco te interessa o valor de uma vida humana - e, se calhar, dás mais valor à vida um assassino qualquer que alguns estados assassinam (dizendo que executaram uma pena capital...) do que a uma vida que poderá ser magnífica e importante para a humanidade, sem sequer a mãe ser obrigada a reflectir no acto que vai fazer ou o estado intervir para ajudar financeiramente a mãe, para salvar aquela vida...