- ‘Lembremos que a Constituição de 1976 consagrou um vasto catálogo de direitos sociais - designadamente o direito à educação, à saúde e à segurança social - como componentes essenciais de um "Estado social" avançado, capaz de garantir a todos o acesso às condições para uma vida digna e de alcançar um mínimo de igualdade social, independentemente dos meios económicos de cada um. Como forma de realização desses direitos para todos, a Constituição optou decididamente pela sua prestação por meio de serviços públicos universais, uns suportados financeiramente pelo Orçamento do Estado (o mesmo é dizer por via de impostos), como sucede com o serviço público de saúde e com o serviço público de ensino, outros por contribuições dos beneficiários para um fundo público comum, como sucede com o serviço público de segurança social, em especial o sistema de pensões.
Paralelamente, a Constituição sempre reconheceu a liberdade de criação de sistemas privados de educação, de saúde e de segurança social, abertos a quem quisesse e pudesse preferi-los. Com exceção da segurança social, em que o sistema público é obrigatório, tal não sucede no caso da saúde e da educação. Todavia, nunca se reconheceu aos interessados qualquer direito de opting out, deixando de contribuir financeiramente para os sistemas públicos correspondentes, nem ao reembolso das despesas efetuadas com a aquisição de serviços privados. O máximo até onde se foi consistiu no desconto fiscal de uma parte das despesas de saúde, de educação e de sistemas complementares de segurança social, no imposto de rendimento, dentro de certos limites. Como se sabe, este sistema de "crédito fiscal", além de importar uma enorme despesa fiscal, por quebra da receita tributária correspondente, originou também uma flagrante desigualdade social, visto que beneficia mais quem mais rendimentos tem, promovendo o abandono do sistema público por parte dos utentes mais ricos, contribuindo assim para uma crescente estigmatização social dos sistemas públicos de educação, de saúde e de segurança social.
Seja como for, o consenso político de 1976 relativo à constituição social, que se tinha mantido no essencial até agora, foi definitivamente rompido com a recente conversão do PSD à liberalização do Estado social, acabando com a vocação universal dos serviços públicos, substituindo-a pela chamada da liberdade de escolha individual, passando o Estado a ser essencialmente pagador dos serviços individualmente recebidos por cada um, indiferentemente de tais serviços terem sido obtidos nos sistemas públicos (na medida em que continuem a existir) ou no setor privado.
Não é difícil imaginar que um tal mecanismo levaria imediatamente a um enorme aumento dos gastos públicos, visto que o Estado teria de subsidiar desde logo os atuais utentes dos sistemas privados de ensino e de saúde (em geral, titulares de rendimentos elevados), que atualmente só beneficiam de deduções fiscais por uma parte das respetivas despesas. Mas provocaria também um aumento da procura dos serviços privados em prejuízo dos sistemas públicos, os quais tendencialmente só manteriam aqueles utentes cujos rendimentos não lhes permitissem pagar os custos adicionais dos sistemas privados. Não é difícil imaginar, tendo em conta experiências alheias, que o resultado final seria a redução dos atuais sistemas públicos a serviços residuais de segunda classe para as regiões mais pobres do país e para as camadas mais pobres da população.
Poderia defender-se que, à semelhança do que sucedeu com a constituição económica, também na área social deveria depender das diferentes maiorias de governo a escolha do melhor sistema em cada momento, de acordo com a orientação de mais ou menos liberdade de cada uma. Todavia, o paralelismo com a área económica não procede inteiramente. A constituição social tem a ver com a realização de direitos sociais, que na cultura política europeia têm a natureza de direitos fundamentais, cuja realização não pode ser deixada à discricionariedade política de cada maioria. Como responsáveis históricos pela consagração constitucional dos direitos sociais e do Estado social, os socialistas não poderão aceitar sem mais o abandono das correspondentes garantias constitucionais, abrindo caminho à desmontagem do Estado social, tal como ele foi construído entre nós depois de 1974.’
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