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Cara Mafalda, continuemos, pois, a conversa, mantendo o método tópico (não vá mesmo algum leitor estar interessado na discussão):
1. Aquilo que eu disse sobre as relações entre religião e direito (e que a Mafalda não compreendeu) é que, podendo uma norma religiosa coincidir com uma norma jurídica, os dois planos devem ser distinguidos.
Para mim, o problema da Igreja Católica é confundir os planos religioso, científico e jurídico. Considera o valor da vida sagrado desde a concepção, o que apela a uma compreensão religiosa desse valor “sagrado”, e depois procura proteger a sacralidade através de sanções do Estado. Pelo meio, para dissimular, vai fazendo umas flores científicas inconsequentes.
A Igreja sustenta que existe vida desde a concepção. Mas a pergunta é: e daí? Volto a questionar: é por essa razão que um óvulo fecundado vale tanto como um ser nascido? É por isso que alguém que já morreu cerebralmente, mas mantém funções vitais, vale tanto como qualquer outra pessoa? Creio que a resposta a estas questões é evidente.
2. Distingamos então dignidade de eficácia penal. É claro que a vida intra-uterina é digna de tutela penal e continuará a merecer essa tutela se o “Sim” vencer. Mas não se confunda tutela penal com obrigatoriedade da intervenção penal. O direito penal constitui uma ultima ratio. O legislador, em regra, não é obrigado a criar crimes, como muito bem esclareceu Figueiredo Dias (ou Claus Roxin).
O direito penal rege-se pelo princípio da subsidiariedade, por força do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. Por tudo isto, não basta dizer que a vida intra-uterina é um bem jurídico digno de tutela para inferir que todos os casos de aborto devem ser punidos. O aborto negligente não é punido. A tentativa de aborto consentido não é punida. Já hoje, há casos de aborto não puníveis (previstos no artigo 142.º do Código Penal).
Quanto à eficácia, a conversa corre o risco de se basear em palpites ou impressões. A verdade é que o aborto clandestino tem sido praticado e não é punido. Portanto, a norma incriminadora não é eficaz e a sua consequência mais visível é provocar sofrimento, a doença e, por vezes, a morte às mulheres grávidas.
É por estas razões que eu gostaria de que o Estado e os adeptos do "Não" apostassem mais em políticas sociais de apoio à maternidade e menos em punições simbólicas. E que alguns adeptos do "Não" se não lembrassem só do valor da vida quando é convocado um referendo.
3. Os números relativos a interrupções da gravidez são impossíveis de obter com um mínimo de rigor, mas estou convencido de que a despenalização não contribuirá para agravar este flagelo (antes pelo contrário), com a vantagem de a interrupção poder ser, com a despenalização, medicamente assistida.
Quanto à liberdade e responsabilidade da mulher, em particular a transformação da mulher em objecto, reconheço o esforço da Mafalda. Mas é preciso mais do que esse esforço para convencer alguém que não seja néscio nem esteja distraído de que a mulher é mais livre e responsável se não puder escolher livremente assumir a gravidez durante as primeiras dez semanas e for punida no caso de a interromper.
4. A Mafalda continua a confundir o direito a constituir com o direito constituído e a política criminal com a dogmática penal.
Repito o que já lhe disse: a pílula do dia seguinte nunca é punida porque o aborto é um crime contra a vida intra-uterina, que, obviamente, não existe antes da nidação. Quando lhe disse isto, a Mafalda agitou-se e chamou-me legalista, porque manifestamente não compreendeu a diferença entre legalismo e princípio da legalidade (artigo 29.º da Constituição).
Reconheço que, agora, a Mafalda faz um esforço para explicar a não punibilidade da pílula do dia seguinte. Diz que o legislador pode delimitar temporalmente o âmbito da protecção do bem jurídico. Nem mais, Mafalda. Se o “Sim” vencer o referendo, o legislador continuará a fazer essa delimitação, alargando o prazo de duas semanas que a nidação demora para dez semanas de gravidez (na minha interpretação, contadas desde a nidação).
Neste discurso, Mafalda, prova-se que não é possível falar já hoje de um valor absoluto de toda a vida humana. E é bom não esquecer, como eu já havia referido, que a vida continua a ser protegida, durante as primeiras dez semanas de gravidez, contra abortos não consentidos.
E não se venha dizer, como alguém fez em comentário ao meu post anterio, que isso não prova nada, porque a bofetada consentida também não é punida. O aborto não consentido continuará a ser punido durante as primeiras dez semanas de gravidez mesmo que não provoque nenhuma ofensa à mulher, porque o bem protegido é a vida intra-uterina.
5. Minha cara Mafalda, não precisava de sublinhar para que eu veja que convive bem com o direito. Do que eu não tenho a certeza é de que o direito conviva tão bem consigo. Às vezes, há paixões não correspondidas.
No caso do aborto, independentemente de densificações e construções dogmáticas, a pergunta inicial é esta: a vida intra-uterina vale tanto como a vida depois do nascimento? Eu acho que não, mas a constituição irlandesa, baseada na doutrina da Igreja Católica, considera que sim. Qual é a consequência? No caso de conflito, tanta faz matar a mulher grávida como o feto, porque o médico estará sempre a cumprir um dever de valor igual (artigo 36.º do Código Penal). Eu acho esta conclusão aberrante. E a Mafalda?
6. Castanheira Neves e Pinto Bronze, inimigos jurados da língua portuguesa, defendem que pode haver analogia em direito penal? Eles e mais ninguém, não. Todos concordam que pode haver analogia em direito penal. Todos os raciocínios interpretativos têm até uma base analógica. O que não pode haver é aplicação analógica de normas incriminadoras. Não se pode punir uma conduta que não é prevista pela lei penal com o argumento de que é tão grave como outra que é expressamente prevista.
Portanto, o que eu disse, e repito, é que não se pode aplicar analogicamente uma norma que prevê um crime, para alargar o seu âmbito. E aí também toda a gente está de acordo, incluindo Castanheira Neves. A pequena diferença é que este professor de Coimbra chama à aplicação analógica interpretação contra a Constituição. Compreendeu, Mafalda?
Nota — Ao dactilografar este post, tive que suspender por momentos a “tarefa” e, quando regressei ao posto de trabalho, saltei para o parágrafo seguinte. Não incluí assim três frases (no ponto 6) que agora acrescentei para tornar o texto mais claro: “Todos concordam que pode haver analogia em direito penal. Todos os raciocínios interpretativos têm até uma base analógica. O que não pode haver é aplicação analógica de normas incriminadoras. Não se pode punir uma conduta que não é prevista pela lei penal com o argumento de que é tão grave como outra que é expressamente prevista.”