quarta-feira, janeiro 31, 2007

A palavra aos leitores

Uma leitora de que gosto muito, a Cleópatra, escreveu um comentário a discordar do que escrevi neste post. Diz o seguinte:

    “Oh Miguel
    A Drª Fátima Mata Mouros, "mandou" para o correio da manhã um artigo de opinião.
    Não um parecer.
    Não me parece,...que tenha pecado ou ido contra o que quer que fôsse, por, como mulher, e mãe, ter dado a sua opinião.

    Talvez por "deformação" profissional nos tivesse parecido demasiado técnica.
    Mas não é.
    O que ela diz é, ou são a final 3 coisas importantíssimas.
    Vamos lá ver:

    1º" Direi ao legislador que pouco interessa se concordo, ou não, com a despenalização do aborto praticado a pedido da mãe.

    2º Que é irrelevante a minha opinião já que a vida humana não pode ser referendada.

    3º Mas para que o direito à vida não nasça apenas às dez semanas de idade, responderei ‘não’!

    É clara.
    É a opinião dela.
    Tem direito a dá-la.
    E deu-a muito bem.

    Independentemente de ser igual ou diferente da minha, deu-a de forma clara, independente, sem medos..

    E acrescento ainda:

    Em 22 anos de exercício de funções, leio jornais, vejo Tv, vou ao cinema, leio livros, vou aos Blogs e ainda faço os acórdãos em tempo e horas, "NUNCA, julguei, ou sequer vi, um processo instaurado contra uma mãe que tivesse abortado. Nunca conheci um caso de sujeição a prisão de mulher pela prática de tal acto."

    E vão duas.

    E vão 22 anos de carreira.

    E estou a falar da minha experiência apenas.
    Não estou a responder à pergunta do referendo.”


Cara Cleópatra:

1.º Não critiquei a Juiz Fátima Mata-Mouros por ela ter exprimido uma opinião acerca da interrupção voluntária da gravidez. Critiquei-a pela opinião que exprimiu, que condiz com os pontos de vista ultraconservadores que tem vindo a defender.

2.º É menos desculpável um juiz do que outra pessoa qualquer dizer que não há nenhuma protecção de vida intra-uterina até à décima semana:

    • Em primeiro lugar, a vida não é só defendida pelo direito penal. Se assim fosse, estávamos desgraçados (podia acabar o direito à saúde, por exemplo).
    • Em segundo lugar, mesmo no direito penal, há a tutela da vida intra-uterina até à décima semana, porque o aborto não consentido continua a ser crime. Só deixará de ser punida a interrupção da gravidez com o consentimento da mulher grávida, porque se dá prevalência à sua liberdade de opção.

3.º É muito redutor dizer que a criminalização do aborto não cria nenhum problema, porque não se viu durante 20 anos nenhuma mulher ser julgada ou punida. A consequência mais nefasta da criminalização do aborto é o flagelo do aborto clandestino. E esse só o compreende quem presta assistência médica e social às pobres mulheres que o praticam.

4.º Poderíamos concluir da argumentação de Fátima Mata-Mouros que a magistrada se iria abster no referendo. Mas não é assim. Fátima Mata-Mouros comunica que irá votar “Não”. Ou seja, o seu voto contribuirá para a manutenção da actual lei. Já percebi que a magistrada não se impressiona com o flagelo do aborto clandestino, mas lembro que a actual lei permite, por exemplo, a interrupção voluntária da gravidez nos casos de indicação eugénica (ao longo das primeiras 24 semanas), que têm por motivação a imperfeição biológica do feto, ou o sacrifício do embrião ou do feto por algo que não fez (violação por parte do pai).

Não é tudo isto contraditório?

terça-feira, janeiro 30, 2007

Ribeiro e Castro, o malthusiano


Afinal, o personalista transfronteiriço Ribeiro e Castro “virou” malthusiano. Explicando-se aos órgãos de comunicação social, fez constar que é contra a interrupção voluntária da gravidez, durante as primeiras dez semanas, por iniciativa da mulher, porque quer que a população portuguesa aumente. Aqui está como um beato personalista se transforma num patriota malthusiano.

É claro que, se Ribeiro e Castro fosse chinês, concordaria com o aborto até ao nono mês, para combater o sobrepovoamento. Desta forma, o ainda presidente do CDS revela uma curiosa coincidência com a política de natalidade do estalinismo, que apenas proibiu o aborto em nome da necessidade de fazer crescer a população. Não é de admirar — les beaux esprits se rencontrent.

[Publicado originalmente no Sim no Referendo]

Vale tudo… até ser burro


Bagão Félix abriu o Código Civil no artigo da sucessão testamentária e logo topou uma norma que estabelece que os “nascituros não concebidos” têm capacidade sucessória passiva. Positivamente eufórico, de Código Civil em punho, acabou de passar pelos telejornais com essa prova esmagadora de que a vida intra-uterina é protegida pela lei civil.

Assim se provou que Bagão Félix sabe abrir um livro. Mas a iliteracia toca a todos… Confesso que Bagão me surpreendeu. Será que ele não percebeu que um “nascituro não concebido” é coisa nenhuma? Aquilo que o Código Civil diz é que o próprio Bagão Félix, se quiser, pode fazer um testamento em que contemple um filho que eu venha a fazer daqui a um, dois, três anos — ou até 20 anos.

Será que a vida começa com esse testamento? Com essa contribuição, Bagão Félix merece tornar-se teólogo. Já estou a ver a nova encíclica: Prehumanae Vitae Testamentariae. Siga o desnorte.

[Publicado originalmente no Sim no Referendo]

A burla jornalística de um talibã

Mário Pinto, professor universitário e colunista regular do Público, já nos brindara, há 15 dias, com uma peça de antologia: há mulheres que abortam por “capricho, negócio, feitiço, vinganças, crueldades, tudo”. Ontem, voltou às páginas do Público para burlar o seu patrão. Em vez de cumprir o contrato, escrevendo, o professor da Católica copia laboriosamente as declarações de voto de vencido do Tribunal Constitucional.

É claro que Mário Pinto só copia o que lhe interessa. Como bom “democrata”, não lhe interessa a posição maioritária do Tribunal Constitucional. Interessa-lhe, sim, o conjunto de posições individuais expressas pelos juízes vencidos. Nestes, desde sensibilidades alegadamente mais à esquerda (Mário Torres) até sensibilidades marcadamente direitistas (Benjamim Rodrigues), perpassa uma mesma incompreensão. Lá no fundo, o que existe é uma concordância política com aquela afirmação de Aristóteles segundo a qual a mulher é um “animal impudens” (ou seja, para quem é posterior ao Vaticano II, o que não é o caso de Mário Pinto, um “animal sem vergonha”).

Nada de ilusões. Sem anticlericalismo, não nos esqueçamos que, em pleno Séc. XXI, a Igreja Católica continua a achar as mulheres indignas do sacerdócio. Para justificar tão anacrónica doutrina, a Igreja invoca o argumento histórico (Cristo só teve discípulos), esquecendo-se de que o argumento é mesmo histórico, e canta umas loas acerca do papel da mulher como mãe. Não nos enganemos. A Igreja é machista e profundamente discriminatória. O mundo da Igreja é dominado por homens e as mulheres servem para pôr flores no altar ou estar recolhidas em conventos. Muita coisa tem mudado, mas é necessário fazer um longo caminho para conseguir mudar as mentalidades. E Mário Pinto não é daqueles que, dentro da Igreja, ajudará a percorrer esse caminho.

Na generalidade das declarações de voto que Mário Pinto transcreve, há um ponto em comum: com mais ou menos confusão acerca do significado do artigo 142.º do Código Penal (na sua versão actual), todos os juízes vencidos pressupõem que é constitucional não punir um aborto nos casos das indicações terapêutica, criminológica e eugénica.

O que os juízes vencidos dizem é que a mera opção da mulher, durante as primeiras dez semanas de gravidez, não deve bastar para excluir a punição. A este argumento já respondeu muita gente. Por último, o ex-bastonário José Miguel Júdice, um católico mais arejado do que Mário Pinto, compreendeu o óbvio: se a lei permite que não seja punido o aborto no caso de gravidez resultante de violação, qualquer outra causa considerada ponderosa pela mulher deve ser considerada admissível. É que nada explicaria que um embrião ou um feto fosse sacrificado por algo que não fez (a violação por parte do pai) se estivesse em causa já um ser nascido.

Quando se consagra o método dos prazos, aquilo que se reconhece é que a maior juíza do conflito, na primeira fase da gravidez, é a própria mãe. A ninguém penaliza mais a morte do feto do que à sua mãe e é ela que tem uma posição de suporte de vida intra-uterina.

Nesse caso, ainda há um conflito entre a liberdade e a autonomia da mãe e a vida intra-uterina, na primeira fase da gestação.

Talvez estes argumentos sejam subtis de mais para o Professor Mário Pinto, ao qual a qualidade de professor universitário (especialista em quê?) não bafejou com especial profundidade científica.

Mas, para além da superficialidade da sua argumentação, fica uma pequena desonestidade teórica: Mário Pinto não quer elucidar-nos de que lado estava quando a lei de 1984 foi aprovada, criando situações de aborto não punível (as tais indicações terapêutica, criminológica e eugénica, a que agora canta loas através de seis gargantas alheias)?

Não sei porquê, mas tenho o palpite de que já nessa altura estava do lado errado. Estarei enganado? No caso de não estar, tem o Professor Mário Pinto uma obrigação: antes de transcrever votos de vencido, explique-nos por que razão mudou de opinião entre 1984 e 2007. Até para que, seguindo o seu conselho, não o ouçamos dizer daqui a vinte anos que é favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez praticada por opção da mulher durante as primeiras dez semanas, mas não mais do que isso…

[Publicado também no Sim no Referendo]

Sugestão de leitura




O artigo da passada terça-feira de Vital Moreira, escrito para o Público, já está disponível aqui. Espera-se que o de hoje, intitulado A estratégia da confusão, possa também ser lido na net muito em breve.

segunda-feira, janeiro 29, 2007

O Prof. Marcelo explicado às criancinhas




[via Sim no Referendo]

No blogue de Marcelo: MP a reboque do “Sim”

    “Foi, uma jogada de mestre, dos defensores do sim terem conseguido que o ministério público a começasse a levantar processos-crime depois do Não ter saído vencedor do referendo de 98. Com todo o circo que isso criou de escutas telefónicas, detenções em directo, julgamentos cheios, servindo o intuito claro de chocar a opinião pública que, evidentemente, ficou chocada por se criminalizar um costume que até então ninguém ousara criminalizar.”

A verdade vem de Espanha

Num encontro de eurodeputadas, que reuniu políticos de todos os matizes, desde Assunção Esteves (do PSD) a Ilda Figueiredo (do PCP), uma eurodeputada espanhola revelou uma verdade surpreendente. Na Espanha, tem subido a natalidade e o aborto ao mesmo tempo. Perante a surpresa dos presentes, adiantou a explicação com alguma timidez: estando as fronteiras espanholas abertas, há mulheres de outros países (sobretudo Portugal, entenda-se) que rumam à Espanha para praticar o aborto. Compreendem?

[Publicado esta tarde no Sim no Referendo]

domingo, janeiro 28, 2007

Marcelo e o enriquecimento

Na sua prédica dominical, Marcelo Rebelo de Sousa manifestou estranheza por haver gente que recusa a inversão do ónus da prova em processo penal e a criação de um crime de enriquecimento ilegítimo (incluindo o penalista social-democrata Costa Andrade).

Para Marcelo — só há facilidades: o crime só abrangeria os titulares de cargos políticos (não a ele, por exemplo) e não vê nenhuma razão para que o enriquecimento súbito e sem explicação não seja investigado.

Aqui, Marcelo recorre ao truque e ao efeito especial. Ninguém falou em investigação, nem pôs em causa a sua necessidade. Desgraçado do país em que o Ministério Público e a polícia não investiguem enriquecimentos desta natureza.

Do que se fala é de punir — palavra que Marcelo evitou cuidadosamente. Achará ele que alguém deve ser punido com prisão até oito anos se não conseguir explicar de onde vieram os seus bens?

Mas há um último dado que surpreende. Quando se falou na introdução dos métodos indiciários em direito fiscal, Marcelo, ele próprio, discordou, protestou e combateu a solução. Quer dizer, não concorda com a ideia de que alguém deva pagar impostos por possuir um iate, carros luxuosos, uma quinta e uma moradia na Linha de Cascais, desde que consiga declarar o salário mínimo (como acontece a um antigo presidente de um clube grande).

Isso não se admite, porque o dinheiro e os impostos são uma coisa séria. Mas se se fala de penas de prisão, então vale tudo! Até porque Marcelo, bem lá no fundo, não acredita que a sua conversa seja para valer.

Marcelo deita achas para a fogueira e atribui 17 valores a Cravinho por esta e outras propostas e dez valores por ir desempenhar um alto cargo para o estrangeiro. Neste caso, Marcelo revela uma nova faceta da luta: dedica-se a combater o enriquecimento lícito.

Frei Bento Domingues no Público de hoje

“Creio que é compatível o voto na despenalização e ser - por pensamentos, palavras e obra - pela cultura da vida em todas as circunstâncias e contra o aborto. O "SIM" à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, dentro das dez semanas, é contra o sofrimento das mulheres redobrado com a sua criminalização. Não pode ser confundido com a apologia da cultura da morte, embora haja sempre doidos e doidas para tudo.”

[via Sim no Referendo]

Quando os juízes se põem a pensar

Dois pareceres acolhidos pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses causaram, há uns tempos, alguma consternação pelas posições reaccionárias aí defendidas. Refiro-me ao parecer sobre a proposta de revisão do Código de Processo Penal, subscrito entre outros pela Juiz Fátima Mata-Mouros, e ao parecer sobre a proposta de revisão do Código Penal, de que foi co-autor o Juiz Pedro Soares de Albergaria.

Fátima Mata-Mouros foi, então, muito crítica para com algumas medidas contidas na proposta de revisão do Código de Processo Penal. Entre outras ofegantes críticas, a magistrada discordou com veemência de os interrogatórios dos arguidos passarem a ter um limite máximo de tempo. Quiçá recordada da eficácia da tortura do sono da PIDE, Fátima Mata-Mouros preferia que a lei admitisse interrogatórios ininterruptos ou tântricos.

Por seu lado, Pedro Soares de Albergaria não se conforma com a circunstância de a proposta de revisão do Código Penal prever a existência de crime de violência doméstica quando o casal é composto por duas pessoas do mesmo sexo. O juiz, na sua infinita candura, considera que "não está minimamente demonstrado que essas situações existem — o legislador deve legislar sobre o que geralmente acontece, não sobre o que pode acontecer ".

Poderíamos ser tentados a pensar que ambos os juízes tiveram um momento menos feliz, que a todos acontece. Mas, hoje, ao ler um artigo de opinião de Fátima Mata-Mouros e um post de Pedro Soares de Albergaria, verifico que assim não aconteceu.

Pedro Soares de Albergaria faz questão de nos chamar a atenção para um post — no mínimo, tolo — num outro blogue, qualificando de “interessante” a aberrante relação que o seu autor encontra entre “aborto e impostos”.

E Fátima Mata-Mouros não se importa de fechar os olhos à realidade. A magistrada não lê jornais e não vê televisão. Mas como pode “testemunhar que em mais de vinte anos de exercício nunca julguei, ou sequer vi, um processo instaurado contra uma mãe que tivesse abortado”, sublinha a “manifesta marginalidade que o crime contra a vida intra-uterina representa no conjunto da actividade dos tribunais criminais portugueses.”

A magistrada não quer saber do drama que é o aborto clandestino e das sequelas que deixa. Mas, por estar tão preocupada com a defesa da vida intra-uterina (que se esquiva a definir), nem quer ouvir falar em referendos. Ainda assim, avisa que vota “Não” — ou seja, quer a manutenção da actual lei, que, por exemplo, permite a interrupção voluntária da gravidez nos casos de indicação eugénica (ao longo das primeiras 24 semanas), que têm por motivação a imperfeição biológica do feto.

Os tribunais estão perigosos.

Cravinho e o crime




Até amigos meus, que, em regra, não se deixam encantar com a espuma dos dias, se mostram seduzidos pelas propostas que João Cravinho apresentou para combater a corrupção. Não tenho, no entanto, a certeza de que todos os defensores das propostas de Cravinho as conheçam.

Não está em causa João Cravinho, que prestou inestimáveis serviços à República. Vejo-o como um democrata e um humanista, um homem íntegro que procurou desempenhar proficientemente as funções públicas que lhe foram confiadas. Mas a verdade é que as propostas que tem apresentado põem verdadeiramente em causa o Estado de direito democrático e os direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição.

Vejam-se, a título de exemplo, duas medidas propostas por Cravinho:

    • A equiparação de todas as formas de corrupção; e
    • A criação de um crime de enriquecimento ilícito.

São, de facto, dois verdadeiros disparates. Veja-se porquê:

1. Pretende Cravinho equiparar todas as formas de corrupção, o que é inédito na Europa. Assim, pretende equiparar a corrupção para a prática de acto ilícito à corrupção para a prática de acto lícito.

Segundo Cravinho e os ignaros gurus que o aconselharam, tanto faz alguém corromper um funcionário para que este lhe passe uma certidão falsa que “comprove” que ele é doutor em economia, sem o ser, como alguém corromper um funcionário para ele lhe passar essa mesma certidão, sendo de facto doutor em economia, num prazo mais curto.

Será que estas situações devem ser equiparadas? É claro que só uma dose monumental de falta de senso e de falta de sentido de justiça aponta para uma resposta afirmativa.

Na criminalização da corrupção, pretende preservar-se a isenção da Administração Pública, que é posta em causa muito mais gravemente quando tem por objecto uma actividade ilícita.

Por isso mesmo, a doutrina penal chama à corrupção para a prática de acto lícito “corrupção imprópria”. Ela é punida na lei portuguesa, mas é claro que não merece pena tão grave como a que é estabelecida para a “corrupção própria”.

2. A segunda proposta de Cravinho, de criação de um crime de enriquecimento ilícito, assenta numa presunção de culpa que viola o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.

Ora a presunção de inocência não constitui um capricho nacional. Corresponde a um importante corolário do Estado de direito democrático e dos regimes políticos liberais. Não é por acaso que os Estados europeus não consagram este crime.

Em contrapartida, a República Popular da China tipifica-o. Mas será de preferir o humanismo chinês, com pena de morte à mistura, à tradição da “velha” Europa? E convém reparar que o tal crime de enriquecimento ilícito é punido em Macau, por exemplo, com prisão até dois anos, e, segundo a proposta de Cravinho, deveria ser punida em Portugal com pena de prisão até oito anos.

Por fim, o crime só seria praticado por titulares de cargos políticos, numa cedência irresponsável à demagogia e ao populismo, que não deixará de fazer muito mal, a prazo, à democracia portuguesa.

O Eng. João Cravinho não merece, pela inteligência e pela idade, receber conselhos. Mas deixo-lhe apenas um: acredite que os fracassos e as misérias da luta contra a corrupção se devem muito mais à incompetência de alguns que se põem em bicos de pés para se arvorarem em campeões da moralidade do que ao texto das leis. Invocar a necessidade de mudar as leis sempre foi um excelente pretexto dos incompetentes.

Sugestão de leitura

Num mesmo artigo, o Juiz Desembargador Rui Rangel analisa hoje a mentalidade corporativa das magistraturas (“Reina, no meio judiciário, uma mentalidade de protecção excessivamente corporativa que sempre combati”) e o caso da menina “sequestrada” pela mãe adoptiva adoptante. A ler.

sábado, janeiro 27, 2007

Pequeno léxico da IVG [1]

Alguns adeptos do “Não” no referendo têm bom coração. Apesar de preconceituosos, e embora não consigam assumir, sem sofismas, a não punição da interrupção da gravidez por iniciativa da mulher durante as primeiras dez semanas, afirmam serem pela despenalização. Esta tendência conta com defensores como Marcelo Rebelo de Sousa e o bispo de Viseu.

O que eles dizem é que votariam “Sim” no referendo se se tratasse de uma mera despenalização da mulher grávida, fosse qual fosse o estádio de gravidez em que abortasse, mas não podem concordar com uma suposta “liberalização”. O Prof. Marcelo, o bispo de Viseu e outros que defendem esta posição não têm razão:

1. Fazendo um pouco de história, convém recordar que a primeira lei que despenalizou o aborto terapêutico, criminológico (em caso de gravidez resultante de crime sexual) e eugénico (em caso de doença ou malformação do feto) é de 1984.

À época, o Partido Comunista e a “arrependida” Zita Seabra queriam mais. Na linha “neo-realista” que já inspirara a dissertação de licenciatura de Cunhal, pretendiam que fosse consagrada na lei uma indicação económico-social. Assim se permitiria a interrupção da gravidez a mulheres que já tivessem um número elevado de filhos ou fossem pobres.

Na altura, a Igreja Católica e todos os “pro-lifers” combateram a despenalização do aborto com os mesmíssimos argumentos que agora usam. Não se admirem, portanto, de que soe a hipócrita a conversa segundo a qual acham que o método das indicações é bom, por reconhecer o valor da vida intra-uterina, mas o método dos prazos é mau por permitir à mulher que interrompa a gravidez, no primeiro estádio de gestação, por qualquer motivo.

Aliás, no plano das motivações, convém sublinhar que, já hoje, se admite o aborto eugénico, que tem por motivação a imperfeição biológica do feto.

Pequeno léxico da IVG [2]

2. Em 1984, as chamadas indicações que permitiram (e permitem) interromper a gravidez eram designadas como causas de “exclusão da ilicitude”. Trocando por miúdos, o legislador sentiu-se obrigado a esclarecer os destinatários das normas de que, naquelas situações de interrupção voluntária da gravidez, o facto seria lícito.

Assim, a interrupção voluntária da gravidez passou a poder ser praticada, legalmente, nos hospitais por médicos devidamente autorizados. O que não impediu nem impede aqueles médicos que achem que o juramento de Hipócrates inibe de praticar o aborto possam deduzir objecção de consciência.

De qualquer modo, devido à pressão social, mesmo naquelas situações em que a interrupção da gravidez passou a ser permitida, a tendência do Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi sempre muito restritiva.

Por isso se diz que a lei espanhola, semelhante à portuguesa, permite a interrupção voluntária da gravidez com uma muito maior latitude. Sucede que os espanhóis entendem que a continuidade de uma gravidez indesejada põe em causa a saúde psíquica da mãe e, por essa razão, acabam por admitir o aborto terapêutico sempre que a mulher grávida o pretende.

É claro que, se em Portugal se passasse o mesmo, não seria necessário as mulheres irem abortar para clínicas em Badajoz ou em Vigo. Bastaria invocarem a sua vontade para poderem abortar até à 12.ª semana — e não apenas até à 10.ª semana — ao abrigo do artigo 142.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

É interessante observar dois fenómenos relacionados com tudo isto:

Os adeptos do “Não” invocam a lei espanhola para defenderem que a lei portuguesa não deve ser alterada. Por inteiro, o discurso invoca a maior liberalidade de costumes de Zapatero e dos socialistas espanhóis para concluir que nem eles se atrevem a propor uma lei como a que resultaria da vitória do “Sim” no referendo português. Hipocrisia ao quadrado: os adeptos do “Não” sabem muito bem que na Espanha já vigora, na prática, um regime igual àquele que pode ser introduzido em Portugal no caso da vitória do “Sim”.

Na Espanha, esse regime já vigora porque os espanhóis “fintaram” a lei, transformando o método das indicações num método dos prazos.

Mas seria isso que gostariam de ver os adeptos do “Não”? De modo nenhum. Eles pretendem que esse regime nunca vigore e, como em Portugal só uma alteração da lei permitirá aplicá-lo, então opõem-se a essa alteração da lei.

O segundo fenómeno, ainda mais estranho, consiste em alguns adeptos do “Sim” afirmarem que o referendo não é necessário, porque já hoje é possível abortar livremente durante as primeiras dez semanas, se a lei for bem interpretada. Não têm, no entanto, razão.

Não é nada claro que a interpretação dada pelos espanhóis seja, no plano jurídico, a melhor interpretação. Pelo contrário, até é difícil sustentar, com um mínimo de obediência à letra da lei (artigo 9.º do Código Civil) que a tal indicação terapêutica se verifica sempre que a mulher quiser interromper a gravidez.

Pequeno léxico da IVG [3]

3. Em 1995, quando entrou em vigor o novo código penal, o legislador deixou de falar em “exclusão da ilicitude”, preferindo a expressão “interrupção da gravidez não punível”. O legislador quis, manifestamente, utilizar uma expressão descomprometida, que não sugerisse que ele considera positiva ou não negativa a interrupção voluntária da gravidez. O que o legislador quis, afinal, foi comunicar aos destinatários das normas é que não se sentia legitimado para punir, em certas situações, o aborto, embora não o considerasse algo valioso ou neutral no plano axiológico.

Porém, nada disto significa que o aborto tenha passado a ser ilegal ou ilícito nos casos das indicações terapêutica, criminológica ou eugénica. Se fosse assim, qualquer “pro-lifer” poderia entrar num hospital e desatar aos tiros, em legítima defesa do feto, contra o médico que pretendesse praticar a interrupção voluntária da gravidez nos casos previstos no artigo 141.º do Código Penal.

É verdade que algo parecido já aconteceu nos EUA, mas nem lá, nem em Portugal algum tribunal teria a insensatez de concluir que o atirador havia actuado licitamente, em legítima defesa.

Por isso, mesmo depois de 1995, as situações de não punibilidade (que são explicadas por uma inexigibilidade de outra conduta à mulher grávida, como bem explicou o Tribunal Constitucional alemão) continuaram a ser situações de interrupção voluntária da gravidez legal ou lícita. Por conseguinte, estamos a falar de impunibilidade ou despenalização associadas a intervenções médicas legais ou lícitas.

Falar em liberalização neste contexto não tem sentido nenhum. Liberaliza-se o comércio, a compra e venda de uma substância ou o consumo de um produto. Não se liberaliza um tratamento médico. Acha, Prof. Marcelo, que faz sentido, fora de um contexto retórico e propagandístico, falar em liberalização de transplantes hepáticos ou de cirurgias cardíacas? Experimente usar essa linguagem e verá que alguns dos seus amigos recearão pela sua sanidade…

Pequeno léxico da IVG [4]

4. No referendo que se aproxima, o método das indicações passa a conjugar-se com o método dos prazos. Se o “Sim” prevalecer, continuará a ser admissível interromper voluntariamente a gravidez nos casos de indicação terapêutica (até ao fim da gravidez ou durante as primeiras 12 semanas, consoante as situações), criminológica (durante as primeiras 16 semanas) e eugénica (ao longo das primeiras 24 semanas), ao abrigo do artigo 142.º do Código Penal.

Mas passará a admitir-se também que a interrupção voluntária da gravidez durante as primeiras dez semanas, por iniciativa da mulher e independentemente do motivo.

Primeiro contra-argumento dos adeptos do “Não”: a mulher pode matar o feto por dá cá aquela palha. Um cruzeiro nos mares do Sul, uma simples dieta, um capricho ou até o gosto de experimentar situações novas pode explicar a decisão abortiva. O mau gosto, ao serviço da exploração deste argumento, não tem limites. César das Neves esmerou-se, ao equiparar a interrupção da gravidez à compra de telemóveis.

É claro que quem tiver a percepção mínima do drama existencial que a mulher grávida enfrenta sabe que ela não interrompe a gravidez de ânimo leve. Quem mais ama o ser que traz dentro de si é a mulher e não alguns moralistas encartados que não resistem a encostar-se ao direito penal.

Além disso, a diferença entre o método das indicações e o método dos prazos não é o abismo que alguns superficiais adeptos do “Não” querem fazer crer.

Na interrupção voluntária da gravidez praticada durante as primeiras dez semanas, por iniciativa da mulher, também há, obviamente, um conflito entre a vida intra-uterina e a liberdade da própria mulher grávida. Em abstracto, poderá achar-se que a vida intra-uterina deveria valer mais. Contudo, não se pode esquecer que a vida intra-uterina não vale tanto como a vida de um ser humano já nascido. Até à 10.ª semana, o feto não sente dor e não tem projecto existencial algum. Tem valor sobretudo pelo que poderá vir a ser.

Por outro lado, é de sublinhar que algumas indicações consagradas em vários países têm, na prática, o mesmíssimo significado que o método dos prazos. Na Espanha, como já se viu, e na França (através da chamada indicação psicológica introduzida pela lei de Simone Weil), vale um princípio de interrupção voluntária da gravidez por iniciativa da mulher, durante o primeiro estádio de gravidez.

A experiência tem revelado que, na falta de um regime com esta latitude, seja qual for a sua configuração na letra da lei, o drama do aborto clandestino e o problema da saúde pública que ele representa não serão combatidos com eficácia.

Pequeno léxico da IVG [5]

5. Alguns argumentos periféricos são ainda utilizados pelos adeptos do “Não”:

    • Perguntam eles qual é a diferença entre um feto com dez semanas e com dez semanas e um dia;
    • Protestam por o SNS investir na interrupção voluntária da gravidez;
    • Alguns acham estranho que o pai não tenha voto na decisão de interromper a gravidez.

Toda esta argumentação, de sentido essencialmente folclórico (salvo o devido respeito), é improcedente. O direito aspira à segurança jurídica. E a segurança jurídica precisa de prazos como nós de pão para a boca. Já observaram os desatentos adeptos do “Não” que o artigo 142º do Código Penal contempla já hoje vários prazos? Será que perceberam que, no caso de violação, se pode interromper a gravidez até à 16ª semana e não um dia mais tarde? Compreenderam também que, no caso de doença grave ou malformação congénita do feto, se pode interromper a gravidez durante as primeiras 24 semanas e nem um dia depois?

O direito penal, como todo o direito, não pode criar a incerteza constante. Se a interrupção voluntária da gravidez é autorizada, tem de se esclarecer, de forma inequívoca, até quando é autorizada.

O marco das dez semanas garante que ainda não começou a actividade cerebral superior e não há um ser capaz de experimentar a dor.

O argumento do SNS é ilegítimo quando recordado pelos adeptos do “Não”. Se eles o valorizassem, deveriam defender então o “Sim” com a única condição de a interrupção voluntária da gravidez ser praticada à custa dos interessados. Mas não é isso que eles dizem defender. Aquilo que alegadamente os move é a vida intra-uterina.

Além disso, o aborto clandestino tem custos económicos e sociais que ultrapassam, de longe, aqueles que serão trazidos pela vitória do “Sim” no referendo. Até no plano da natalidade, as consequências do aborto clandestino são verdadeiramente catastróficas, provocando, com frequência, a esterilidade feminina.

Quanto à audição do pai, recomendo a leitura de um acórdão do Supremo Tribunal Federal dos EUA (Casey v. Estado da Pensilvânia). Este acórdão concluiu, como não podia deixar de ser, que a mulher grávida é a única que pode decidir sobre a continuação da gravidez. Os adeptos do “Não” assemelham-se, neste particular aspecto, aos membros de certas tribos, que ainda hoje berram e simulam dor enquanto as mulheres têm os filhos. Será difícil compreender que o feto está dentro da mulher grávida e essa tem uma relação íntima e inigualável com o ser em gestação? E não é verdade que também já é hoje a mulher que se decide pela interrupção voluntária da gravidez nos casos previstos no artigo 142º do Código Penal?


Portanto, caros amigos adeptos do “Não”, deixo aqui um apelo:

    Vamos ser humanos e não inventar desculpas para continuar a defender a punição da mulher grávida. Vamos defender a vida e a integridade da mulher grávida, não a condenando ao flagelo do aborto clandestino. Vamos compreender que o direito penal não deve intervir quando não serve, efectivamente, para defender bens jurídicos. Vamos compreender que o SNS não é uma bandeira moral e serve para minorar o sofrimento, incluindo o sofrimento de toxicodependentes, de alcoólicos ou de fumadores contumazes. Vamos votar “Sim” e vamos defender a sério a vida intra-uterina, dedicando-nos a causas sociais, protegendo crianças abandonadas, ensinando as práticas contraceptivas e lutando contra as desigualdades sociais.
Menos retórica e mais acção — é o que se pede!

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Guantánamo na Rua da Prata?


A manchete do Correio da Manhã de hoje confunde mais do que esclarece: há quadros do fisco pagos por bancos e estão a decorrer duas auditorias para averiguar a coisa. Vamos por partes:

1. Há juristas que estão autorizados a trabalhar fora do fisco. No fundo, trata-se de uma regalia que, presumo, vem dos tempos em que havia poucos licenciados em direito e era preciso conservá-los. Mas há-os em outras instituições nas mesmas condições, incluindo na Inspecção-Geral de Finanças, que está a realizar uma das acções a que o jornalista chama auditorias.

Sou da opinião que tal situação não se justifica nos tempos que correm. Como não faz sentido que funcionários da DGCI ou da IGF possam ser simultaneamente revisores oficiais de contas. Mas a moralidade tem de se aplicar a todos…

2. Mas a notícia traz acoplada uma outra notícia, à qual o jornal não deu importância. O director-geral dos Impostos mandou efectuar uma auditoria interna para averiguar se os funcionários do fisco acumulavam o exercício de funções públicas com outras realizadas para entidades privadas. Como se admite que o responsável do fisco não tenha contratado o detective Correia para levar a cabo esta tarefa, conclui-se que o director-geral dos Impostos deu luz verde para que fossem vasculhadas as declarações de rendimentos dos funcionários da DGCI.

Há aqui manifestamente uma quebra do sigilo fiscal. Os funcionários do fisco não têm menos direitos do que os restantes contribuintes. Informa o jornal de que, «[q]uestionado o Ministério das Finanças sobre os resultados daquelas duas auditorias, fonte oficial adiantou que “dado tratar-se de matéria que envolve elementos de natureza pessoal, que poderão ser susceptíveis de cruzamento de informação, a acção de auditoria em apreço encontra-se a aguardar parecer jurídico no âmbito da legislação respeitante à protecção de dados”». A verdade é que a quebra do sigilo fiscal já se verificou… e chegou, com números e tudo, ao Correio da Manhã.

PS — O Prof. Sanches foi ouvido sobre a matéria. Como seria de esperar, não se pronuncia sobre a alegada quebra de sigilo fiscal. Mas leiam-no, porque ele sabe do que fala: foi funcionário da DGCI.

A “ruína lenta de Carmona”


Vasco Pulido Valente dedica a sua crónica de hoje, no Público, a analisar a “trapalhada” em que se converteu a Câmara de Lisboa, tendo concluído que “o lixo acumulado chegou a um ponto em que não se limpa com menos do que uma grande vassourada, ou seja, de eleições.”

É difícil estar em desacordo com esta conclusão de Pulido Valente. O problema vem a seguir, quando atribui a responsabilidade absoluta deste estado de coisas a “Santana e Carmona”. Então, o actual executivo camarário, depois de uma limpeza completa dos santanistas que constituíam o anterior executivo, não é composto apenas por mendistas, a ponto de o próprio Carmona ter cortado com Santana Lopes?

Como até sublinha Pulido Valente, não é por causa, ou exclusivamente por causa, da investigação da Judiciária aos negócios com a Bragaparques que a Câmara de Lisboa chegou a esta situação. Marques Mendes, que escolheu a dedo a equipa que lidera o Município de Lisboa, sai são e salvo do atoleiro?

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Sugestão de leitura

Quem leu ontem este artigo, deve ler hoje este.

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Leitura obrigatória

Fernanda Câncio escreve hoje, no DN, sobre Factos e datas errados nas sentenças de Torres Novas. E não poupa o comunicado da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Se a resposta a este artigo for o silêncio, estamos conversados.

Direitos especiais

Miguel Sousa Tavares comparava, n’A Bola de ontem, a última violação de segredo de justiça no processo Apito Dourado com as sucessivas revelações acerca das investigações em curso no âmbito do mesmo processo:

    “Em segundo lugar, não deixa de ser curioso que só esta situação tenha enfurecido a ilustre procuradora, e não todas as outras situações de violação do segredo de justiça — e, essas sim, indiscutíveis — que têm ocorrido com os interrogatórios à pessoa da D.ª Carolina Salgado, levados a cabo por ela. De há duas semanas para cá, desde que Maria José Morgado iniciou tais interrogatórios, temos sido confrontados com a descrição detalhada dos mesmos, publicada em alguns jornais e em tais termos que, mais do que relatos dos interrogatórios a uma testemunha, parece estar-se perante o teor de uma sentença sumária e condenatória dos arguidos. Ora, correndo uma vez mais o risco de enfurecer a fúria justiceira instalada tranquilamente em tantos espíritos moralizadores da praça, faço notar o seguinte: a Dr.ª Maria José Morgado tem beneficiado do privilégio processual de interrogar livremente uma testemunha quando quer, onde quer, as vezes que quer, pelo tempo que quer. Falo sem a presença de um juiz que possa impedir ou limitar formas inadmissíveis de interrogar, sem a presença dos acusados e de advogado que os represente e que possam contestar as perguntas, contra-interrogar, assegurar um princípio fundamental de direito penal, que é o do contraditório. Que estes interrogatórios, onde os arguidos não têm a menor hipótese de defesa e que se passam apenas entre gente do Ministério Público, apareçam depois publicados nos jornais, isso sim, é que é uma grave violação do segredo de justiça — que no passado e em casos semelhantes tem funcionado como uma forma de pré-condenação de suspeitos e pré-determinação da opinião pública. Que a ninguém ocorra mandar investigar essas fugas parece-me, de facto, curioso.”

terça-feira, janeiro 23, 2007

Sugestão de leitura

O processo de Torres Novas analisado por Pedro Adão e Silva (Quando o melhor é fugir), que deixa um conselho: “quando tiver um problema judicial e, se for inocente, não confie no funcionamento da justiça. O melhor que tem a fazer é fugir. Fuja e ganhe tempo; fuja e evite estabelecer contacto com um juiz de primeira instância (pois, infelizmente, nem todos têm doses mínimas de bom senso); fuja e espere por uma decisão sensata de um tribunal superior; fuja e proteja-se a si e à sua família. Trata-se de uma opção não só racional, como avisada. O que não pode deixar de nos recordar que há poucas coisas simultaneamente mais assustadoras e graves para o funcionamento de uma sociedade decente.”

Um Leão que promove eventos

Sei que não parece, mas o sector das obras públicas e da construção civil está também sujeito à supervisão de uma entidade reguladora. Trata-se do IMOPPI, Instituto dos Mercados de Obras Públicas e Particulares e do Imobiliário. Há uns tempos, num comentário a uma notícia do Diário Económico, um leitor sintetizou assim o estado em que se encontra o regulador do sector: “O problema do IMOPPI é ter sido capturado pelos interesses que pretensamente pretende regular.

Acontece que, periodicamente, o presidente do IMOPPI, Ponce de Leão, manda fazer uns “eventos” para demonstrar que o regulador está vivo — e para desmentir a ideia de que os empreiteiros, embora não estando, estão à frente do IMOPPI. Por acaso, tais “eventos” têm coincidido sempre com mudanças governativas ou reestruturações do sector (em que os dirigentes ficam em gestão corrente, o que acontecerá agora com o PRACE).

Nomes de código dos três “eventos” realizados pela mão de Ponce de Leão: “Arrastão”, “Aparição” (na zona de Fátima) e, agora, “Última Ceia”. Se em relação ao primeiro “evento” se aceita que não tivesse produzido resultados, porque foi divulgado antecipadamente tratar-se de uma acção pedagógica (seja isso o que for), no que toca aos restantes esperam-se resultados. Ponce de Leão tem, no entanto, um pequeno problema: para obter resultados, é preciso tratar a papelada recolhida, o que ainda não aconteceu…

[Posts anteriores sobre o IMOPPI: aqui, aqui e aqui.]

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Não foi o dono que mordeu no cão

Uma notícia que tem todos os ingredientes para morrer num cantinho perdido das páginas de economia dos jornais.

A palavra aos leitores

Na caixa de comentários dest post, um leitor escreveu o seguinte:

    “Não conheço o processo, sou juiz, mas das notícias vindas a lume nos meios de comunicação social queria introduzir outros dados na conversa:
    Efectivamente é discutível o enquadramento jurídico dado à situação concreta, bem como a pena concreta aplicada.
    Mas, desde logo, o chamado "pai adoptivo" não o é, pela simples razão de que não houve qualquer adopção.
    E o processo de adopção - não sei sequer se chegou a ser iniciado - bem como o processo crime não andaram mais depressa porque o dito "pai adoptivo" sempre se recusou a apresentar a criança.
    A criança foi-lhe entregue pela mãe - uma prostituta brasileira - não se sabe exactamente em que condições mas completamente à margem do controle das entidades competentes.
    O que, como é óbvio, é contrário ao próprio interesse da criança, uma vez que deste modo ficou impossibilitada uma avaliação da situação concreta pelo Tribunal e pelas entidades competentes, incluindo assistentes sociais, psicólogos, etc...
    O dito "pai adoptivo" quis fazer prevalecer a sua vontade sobre a lei e apresentar o facto consumado da "adopção".
    O que não fica bem a nenhum cidadão e menos ainda a um militar.
    Talvez por aí se perceba melhor a pena aplicada ao caso concreto.
    Em todo o caso a situação é, de facto, preocupante, sobretudo tendo em conta que a criança está já, é indiscutível, a ser altamente prejudicada.”

Sugestões de leitura

Mafaldinha, a fragmentária




A Mafalda estendeu a conversa que vínhamos mantendo ao Vasco M. Barreto, a propósito do que ele escreveu neste post. A “nossa” adepta do “Não” veio utilizar um argumento de peso para provar que a não punição da pílula do dia seguinte não constitui argumento que prove a incoerência daqueles que, como a própria Mafalda, se opõem à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Vou responder apenas a esse argumento parcialmente novo e, a partir de agora, tentarei não me repetir.

O que diz a Mafalda? Diz que o direito penal é fragmentário e que, por isso, não há nada de anómalo em a pílula do dia seguinte não ser punida, mas já ser punida qualquer manobra abortiva posterior à nidação.

Ora vejamos: o carácter fragmentário do direito penal significa só que apenas podem ser punidas as condutas concretamente previstas na lei penal. Sabe qual é a outra forma de falar nisso, Mafalda? É dizer que não há lacunas em direito penal, quando estão em causa normas incriminadoras. E isso implica que não possa haver aplicação analógica dessas normas incriminadoras para punir outras condutas.

Lembra-se dessa nossa conversa, Mafalda? Às vezes, suspeito que tem umas “inspirações” que não lhe permitem compreender globalmente os problemas jurídicos.

Façamos um ponto de situação. O legislador só pode criar crimes para defender bens jurídicos dignos e carentes de tutela. Em regra, não é obrigado a criar crimes. Tal como lhe disse, citando o Prof. Figueiredo Dias, só é obrigatório criar crimes quando a Constituição obrigatoriamente o prevê.

Nos outros casos, tudo depende da possibilidade de proteger os seus bens jurídicos de outra maneira (por exemplo, através de politicas sociais). É assim que se fala do princípio da intervenção mínima do direito penal. Fragmentariedade, proibição de analogia e subsidiariedade conjugam-se com harmonia para quem saiba direito penal. Verdade, Mafalda?

Mas o problema de Mafalda é outro. A Mafalda não está deste lado, que é o lado do Iluminismo e da modernidade — está do lado do “Antigo Testamento”, apesar de eu ter a certeza de que é uma excelente pessoa. A Mafalda pensa que, por a vida ser um bem jurídico e por a Constituição dizer que ela é inviolável no artigo 24.º, é inconstitucional despenalizar qualquer atentado contra a vida antes e depois do nascimento.

Por isso, Mafalda, a sua única posição coerente, repito, é lutar pela criminalização da pílula do dia seguinte. Eu até lhe dou uma ajuda técnica se o quiser fazer:

Em primeiro lugar, proponha que a tentativa passe a ser punida sempre. Para isso basta que se acrescente um novo número ao artigo 140.º, um n.º 4, que estabeleça que a tentativa é punível. Assim, apesar de a pena para o crime consumado não exceder três anos, a tentativa passará a ser punida, como acontece, por exemplo, no furto, na burla ou no dano. Na perspectiva da Mafalda, esta é a solução que se impõe, até em nome do argumento simplista de que a propriedade não merece mais protecção do que a vida.

Em segundo lugar, modifique a epígrafe que fala em crimes contra a vida intra-uterina por uma epígrafe que fale em crimes contra a vida concebida. No próprio articulado, para evitar enganos, diga que é punido “quem por qualquer meio (…) fizer abortar a mulher após a concepção (…)”.

Com estas duas propostas, a Mafalda fará um brilharete no seu movimento. Poderá até competir com o pároco de Castelo de Vide pelo título de campeã “pro-lifer”.

Já percebi, porém, que a Mafalda não quer ir por esse caminho. Uma réstia de bom senso previne-a de que é má ideia. Essa réstia, assuma-a com coragem, deveria permitir-lhe compreender que a vida intra-uterina não é tão valiosa como a vida de um ser nascido e que a vida intra-uterina tem de ser ponderada no caso de conflito com outros bens jurídicos: a vida, a integridade física, a liberdade e a dignidade da mulher grávida.

É este passo que a Mafalda não consegue dar e lhe provoca vertigens. Compreendo e respeito o seu receio. Mas não venha com a conversa de que a punição da tentativa impossível de aborto não é punível porque a tentativa não é punível, com a conversa de que a pílula do dia seguinte não é crime porque pode ser comprada em qualquer farmácia, etc., etc..

Faço-lhe a justiça, Mafalda, de acreditar que compreende que todos esses argumentos encerram uma petição de princípio. O problema a que não consegue responder é este. Na sua perspectiva, a vida é inviolável desde a concepção e é obrigatório constitucionalmente punir os atentados contra ela. Se é assim, força! Faça campanha contra a pílula do dia seguinte!

domingo, janeiro 21, 2007

Uma pequena nota

Pois, eu não fui ainda capaz de falar sobre o drama da Esmeralda, sobre o drama do pai adoptivo e sobre o drama do pai natural. Ainda não é hoje que o farei. Esta pequena nota vem a propósito da entrevista dada ontem pelo Desembargador António Martins, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, à SIC.

António Martins tem razão quando fala em dois processos distintos e nas resistências dos pais biológicos, desde há vários anos, para devolverem a menina ao pai natural. Mas, no processo crime, a condenação por sequestro agravado numa pena de seis anos parece-me excessiva. A mim e à generalidade das pessoas.

Mas, como seria de esperar, o presidente da corporação dos juízes tratou apenas de salvar a pele dos juízes envolvidos na actual polémica. Não respondeu, mas deveria tê-lo feito, às seguintes questões:

    • Será que seis anos de prisão são uma pena justa para quem adoptou uma criança e se recusa a devolvê-la e a cumprir a ordem do tribunal?
    • Que pena é que se aplica a uma violação ou a um sequestro?

Informar na hora

Dando razão ao procurador-geral da República, para não o deixar mal, quando disse que não é possível evitar a violação do segredo de justiça, mão amiga encarregou-se de enviar para um jornal digital o despacho de reabertura do inquérito a Pinto da Costa. É assim mesmo — transparência é que é preciso!

Caminhamos para que, não num futuro muito distante, possa ser criado um canal Justiça para competir com o canal Parlamento, transmitindo em directo os interrogatórios de arguidos e testemunhas, bem como as escutas realizadas nos inquéritos. Telenovelas e reality shows são, como se vê, coisas de televisões do século passado.

Leitura recomendada

Enquanto não respondo ao último post da Mafalda, o que certamente não terei tempo para fazer antes de anoitecer, venho-lhe propor, neste diálogo estimulante que temos travado, que leia o boletim da paróquia de Castelo de Vide.

Nesse boletim, que merecidamente foi divulgado pela televisão, o pároco não só sustenta que é proibido votar “Sim” no referendo como avisa que serão excomungados automaticamente todos os paroquianos que votarem “Sim”. E para não ficarem dúvidas das consequências da excomunhão, vai avisando esses paroquianos de que não terão funeral católico e, portanto, irão direitinhos para o inferno. Gostaria de deixar algumas perguntas ao Sr. Pároco ou a quem quiser responder por ele:

    1. Uma vez que se pode pecar por actos e omissões, este regime também se aplica a quem não votar ou a quem se abstiver?
    2. Uma vez que se pode pecar por pensamentos, palavras e actos, também pode ser excomungado quem tenha pensado em votar “Sim” ou tenha dito que o ia fazer, mesmo que não o tenha feito?

Penso que o Sr. Pároco, para velar pelo seu rebanho, deveria esclarecer estes pontos quanto antes.

Mas falemos a sério. É claro que o pároco de Castelo de Vide, embora doutor em teologia, não percebe nada do que está a dizer. O pecado sancionado com a excomunhão “lata sentiatiae” aplica-se a quem atentar contra a vida e não a quem defender o perdão para quem atentar contra a vida. Percebeu, Sr. Padre?

De qualquer maneira, cara Mafalda, eis um bom exemplo da tal confusão que V. diz não existir entre religião e direito.

PS — Antes de responder ao seu último post, peço-lhe que releia o ponto 6 do meu, ao qual acrescentei três frases, que, por lapso, não tinha inserido.

[Post publicado originalmente no Sim no Referendo]

sábado, janeiro 20, 2007

Mafaldinha, again



[clique na imagem para a aumentar]



Cara Mafalda, continuemos, pois, a conversa, mantendo o método tópico (não vá mesmo algum leitor estar interessado na discussão):

1. Aquilo que eu disse sobre as relações entre religião e direito (e que a Mafalda não compreendeu) é que, podendo uma norma religiosa coincidir com uma norma jurídica, os dois planos devem ser distinguidos.

Para mim, o problema da Igreja Católica é confundir os planos religioso, científico e jurídico. Considera o valor da vida sagrado desde a concepção, o que apela a uma compreensão religiosa desse valor “sagrado”, e depois procura proteger a sacralidade através de sanções do Estado. Pelo meio, para dissimular, vai fazendo umas flores científicas inconsequentes.

A Igreja sustenta que existe vida desde a concepção. Mas a pergunta é: e daí? Volto a questionar: é por essa razão que um óvulo fecundado vale tanto como um ser nascido? É por isso que alguém que já morreu cerebralmente, mas mantém funções vitais, vale tanto como qualquer outra pessoa? Creio que a resposta a estas questões é evidente.

2. Distingamos então dignidade de eficácia penal. É claro que a vida intra-uterina é digna de tutela penal e continuará a merecer essa tutela se o “Sim” vencer. Mas não se confunda tutela penal com obrigatoriedade da intervenção penal. O direito penal constitui uma ultima ratio. O legislador, em regra, não é obrigado a criar crimes, como muito bem esclareceu Figueiredo Dias (ou Claus Roxin).

O direito penal rege-se pelo princípio da subsidiariedade, por força do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. Por tudo isto, não basta dizer que a vida intra-uterina é um bem jurídico digno de tutela para inferir que todos os casos de aborto devem ser punidos. O aborto negligente não é punido. A tentativa de aborto consentido não é punida. Já hoje, há casos de aborto não puníveis (previstos no artigo 142.º do Código Penal).

Quanto à eficácia, a conversa corre o risco de se basear em palpites ou impressões. A verdade é que o aborto clandestino tem sido praticado e não é punido. Portanto, a norma incriminadora não é eficaz e a sua consequência mais visível é provocar sofrimento, a doença e, por vezes, a morte às mulheres grávidas.

É por estas razões que eu gostaria de que o Estado e os adeptos do "Não" apostassem mais em políticas sociais de apoio à maternidade e menos em punições simbólicas. E que alguns adeptos do "Não" se não lembrassem só do valor da vida quando é convocado um referendo.

3. Os números relativos a interrupções da gravidez são impossíveis de obter com um mínimo de rigor, mas estou convencido de que a despenalização não contribuirá para agravar este flagelo (antes pelo contrário), com a vantagem de a interrupção poder ser, com a despenalização, medicamente assistida.

Quanto à liberdade e responsabilidade da mulher, em particular a transformação da mulher em objecto, reconheço o esforço da Mafalda. Mas é preciso mais do que esse esforço para convencer alguém que não seja néscio nem esteja distraído de que a mulher é mais livre e responsável se não puder escolher livremente assumir a gravidez durante as primeiras dez semanas e for punida no caso de a interromper.

4. A Mafalda continua a confundir o direito a constituir com o direito constituído e a política criminal com a dogmática penal.

Repito o que já lhe disse: a pílula do dia seguinte nunca é punida porque o aborto é um crime contra a vida intra-uterina, que, obviamente, não existe antes da nidação. Quando lhe disse isto, a Mafalda agitou-se e chamou-me legalista, porque manifestamente não compreendeu a diferença entre legalismo e princípio da legalidade (artigo 29.º da Constituição).

Reconheço que, agora, a Mafalda faz um esforço para explicar a não punibilidade da pílula do dia seguinte. Diz que o legislador pode delimitar temporalmente o âmbito da protecção do bem jurídico. Nem mais, Mafalda. Se o “Sim” vencer o referendo, o legislador continuará a fazer essa delimitação, alargando o prazo de duas semanas que a nidação demora para dez semanas de gravidez (na minha interpretação, contadas desde a nidação).

Neste discurso, Mafalda, prova-se que não é possível falar já hoje de um valor absoluto de toda a vida humana. E é bom não esquecer, como eu já havia referido, que a vida continua a ser protegida, durante as primeiras dez semanas de gravidez, contra abortos não consentidos.

E não se venha dizer, como alguém fez em comentário ao meu post anterio, que isso não prova nada, porque a bofetada consentida também não é punida. O aborto não consentido continuará a ser punido durante as primeiras dez semanas de gravidez mesmo que não provoque nenhuma ofensa à mulher, porque o bem protegido é a vida intra-uterina.

5. Minha cara Mafalda, não precisava de sublinhar para que eu veja que convive bem com o direito. Do que eu não tenho a certeza é de que o direito conviva tão bem consigo. Às vezes, há paixões não correspondidas.

No caso do aborto, independentemente de densificações e construções dogmáticas, a pergunta inicial é esta: a vida intra-uterina vale tanto como a vida depois do nascimento? Eu acho que não, mas a constituição irlandesa, baseada na doutrina da Igreja Católica, considera que sim. Qual é a consequência? No caso de conflito, tanta faz matar a mulher grávida como o feto, porque o médico estará sempre a cumprir um dever de valor igual (artigo 36.º do Código Penal). Eu acho esta conclusão aberrante. E a Mafalda?

6. Castanheira Neves e Pinto Bronze, inimigos jurados da língua portuguesa, defendem que pode haver analogia em direito penal? Eles e mais ninguém, não. Todos concordam que pode haver analogia em direito penal. Todos os raciocínios interpretativos têm até uma base analógica. O que não pode haver é aplicação analógica de normas incriminadoras. Não se pode punir uma conduta que não é prevista pela lei penal com o argumento de que é tão grave como outra que é expressamente prevista.

Portanto, o que eu disse, e repito, é que não se pode aplicar analogicamente uma norma que prevê um crime, para alargar o seu âmbito. E aí também toda a gente está de acordo, incluindo Castanheira Neves. A pequena diferença é que este professor de Coimbra chama à aplicação analógica interpretação contra a Constituição. Compreendeu, Mafalda?

Nota — Ao dactilografar este post, tive que suspender por momentos a “tarefa” e, quando regressei ao posto de trabalho, saltei para o parágrafo seguinte. Não incluí assim três frases (no ponto 6) que agora acrescentei para tornar o texto mais claro: “Todos concordam que pode haver analogia em direito penal. Todos os raciocínios interpretativos têm até uma base analógica. O que não pode haver é aplicação analógica de normas incriminadoras. Não se pode punir uma conduta que não é prevista pela lei penal com o argumento de que é tão grave como outra que é expressamente prevista.”

No Sim no Referendo

Há Marques e Marques

Marques Guedes criticou duas magistradas por terem participado numa sessão na Assembleia da República, promovida pelo grupo parlamentar do PS, sobre o próximo referendo. As magistradas explicaram aos deputados o regime legal e as consequências jurídicas do referendo. Foi preciso Marques Mendes explicar ao líder do seu grupo parlamentar que a interrupção voluntária da gravidez não é uma questão partidária, mas, antes, uma questão de cidadania, que a todos diz respeito. Há momentos em que a única solução é desautorizar quem diz asneiras.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Votar SIM



A partir de hoje, estarei também aqui.

A Cartilha do Marialva





Lê-se e não se acredita. Por estranho que pareça, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) fez seu o parecer da Associação Sindical dos Juízes Portugueses sobre a proposta de revisão do Código Penal, subscrito pelos juízes Pedro Soares de Albergaria e José Mouraz Lopes.

Das críticas do Conselheiro Santos Bernardino, vice-presidente do CSM, não se pode dizer o que Marcelo Caetano disse a um doutorando nas suas provas: “o que é original é mau e o que é bom não é original”. Infelizmente, a crítica do Conselheiro Santos Bernardino é má e não é original.

1. Tecnicamente, o vice-presidente do CSM está enganado: não se está a equiparar a união homossexual ao casamento. Está-se a equiparar a união de facto homossexual à união de facto heterossexual. Essa equiparação é imposta pelo artigo 13.º, n.º 2, da Constituição, que proíbe discriminações com base na orientação sexual.

Vou explicar devagarinho, para ver se os críticos conseguem entender.

Actualmente, o Código Penal equipara os maus tratos conjugais aos maus tratos praticados no âmbito de uma união de facto. Eis a prova: “a mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos” (artigoº 152.º, n.º 2, do Código Penal). A mesma pena é a pena do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal — prisão de um ano a cinco anos.

Perante esta norma, não há dúvida nenhuma de que, no Código Penal, a relação conjugal já é equiparada à união de facto. Uma boa interpretação do Código Penal já hoje obriga a considerar que a união de facto tanto abrange uniões homossexuais como uniões heterossexuais.

Eu disse uma “boa interpretação”? Vou dizer de outra maneira: é a única interpretação que é admitida pelo artigo 13.º, n.º 2, da Constituição, embora o vice-presidente do CSM se borrife nela.

A única alteração feita na proposta de revisão do Código Penal é praticamente um esclarecimento. O legislador vem dizer que as relações análogas às dos cônjuges de que já hoje se fala tanto podem ser homossexuais como heterossexuais.

A crítica que talvez se pudesse fazer à proposta é que esse esclarecimento deveria ser escusado. Mas esta crítica seria injusta. Juízes como Pedro Soares de Albergaria, Mouraz Lopes e Santos Bernardino estão aí para provar com clareza que afinal o esclarecimento é necessário.

Perante um regime constitucionalmente obrigatório, arvoram-se em consciência moral da nação, e dizem que é indispensável um “alargado debate nacional”. Já agora, Senhores Doutores, não querem um debatezinho alargado para saber se a Constituição deve ser cumprida? Não é verdade que os tribunais estão obrigados, acima de tudo, a cumprir a Constituição (artigo 204.º)?

2. Depois de tão ponderosa critica, o vice-presidente do CSM ficou também muito preocupado porque o artigo 170.º da proposta de revisão do Código Penal prevê que pode ser punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias quem constranger uma pessoa a um contacto de natureza sexual. É preciso compreender que o Código Penal já hoje pune, com esta pena, quem praticar perante outra pessoa um acto exibicionista.

Quem aparecer nu perante outra pessoa pode ser punido. Isto não preocupa o Conselheiro santos Bernardino. Mas já o preocupa que possa ser punido com a mesma pena uma pessoa que apalpar os seios a outra à força. É disto que se trata — e se o código não for alterado, esta conduta pode ser considerada lícita, porque não é acto sexual de relevo e não merece certamente uma pena de prisão até oito anos (artigo 163.º, n.º 1, do Código Penal).

É claro que o vice-presidente do CSM não fala de um apalpão no rabo ou de um apalpão nos seios, mas sim de um encosto nos transportes públicos. Mas o que o autoriza a interpretar assim a norma?

Um encosto destes é um contacto de natureza sexual (a não ser que seja um encosto como aquele que Daniella Cicarelli e o seu namorado deram e que ficou imortalizado no YouTube)? Parece que o Conselheiro Santos Bernardino acha que os seus colegas estão sempre prontos a “interpretar” o direito de forma disparatada.

De qualquer maneira, esta crítica volta a revelar pouca sensibilidade aos princípios da igualdade e da proporcionalidade. É absurdo achar que o exibicionista merece punição e o importunador deve ficar impune. Só uma visão moralista e retrógrada do direito penal sexual pode sustentar esta conclusão.

3. Por último, a fazer fé no DN, a delegação do CSM que se deslocou à Assembleia da República criticou o regime da liberdade condicional, que permite que o condenado seja libertado depois de cumprir metade da pena, se o tribunal achar que não há perigo de reincidir nem de perturbar a paz pública.

Mais uma vez, os juízes desconfiam dos seus pares. A liberdade condicional não é obrigatória. Pode ser concedida nessa altura ou mais tarde, se (e só se) os tribunais de execução de penas entenderem que se justifica. Mas o vice-presidente do CSM não quer que os juízes tenham esse poder.

Este regime estava consagrado no Código de 1982 e foi retirado, de forma imponderada, em 1995, contra a vontade do Prof. Figueiredo Dias. Em 1995, a liberdade condicional, que pode ser concedida quando estiver cumprida metade da pena (a regra), passou a só poder ser concedida quando estiverem cumpridos dois terços da pena, quanto aos crimes mais graves. Mas este regime não se justifica, até porque pode ser num crime mais grave (por exemplo, um homicídio passional) que menos perigo de reincidência existe e mais fácil é a reintegração social.

Mas, acima de tudo, também aqui se revela desprezo pela igualdade e pela proporcionalidade. O que faz sentido é que a regra da liberdade condicional seja igual, em proporção, para todos os crimes (metade ou dois terços) e o que o tribunal decida, caso a caso, se se verificam os requisitos para a sua concessão. Por isso, o regime proposto é justo. E não tem nenhum sentido falar em economicismo. No fim de contas, quem concede ou nega a liberdade condicional são os tribunais.

Sugestão de leitura

Pedro Pita Barros escreve no Diário Económico sobre o sector dos combustíveis. Do artigo, intitulado O peso da história, reproduz-se esta passagem:

    'O facto de as empresas do sector dos combustíveis terem a capacidade de reagir muito rapidamente a descidas generalizadas dos preços por parte dos rivais torna ainda mais atractiva uma estratégia do tipo “manter os preços altos enquanto os outros o fizerem”. Ou seja, o resultado do funcionamento do mercado pode ser próximo do de cartelização, mesmo que as empresas nada combinem entre si.'

O teste da verdade


Para os leitores que possam estar confusos e que tenham dúvidas sobre a atitude eticamente correcta a tomar numa situação qualquer, vou deixar um método infalível da descoberta do caminho a seguir: leia-se o que o Juiz Pedro Soares de Albergaria escreve e, depois, faça-se ao contrário. Não tenha dúvidas. Não há perigo de confusão: em tudo o que envolva escolhas, Pedro Soares de Albergaria está do lado errado.

Já havia antes acontecido com a apreciação que faz de Bush e do terrorismo. Já havia também acontecido com o parecer de que foi co-autor sobre a proposta de revisão do Código Penal (referido no CC, por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Agora o Juiz Pedro Soares de Albergaria deu um um novo ar da sua graça a propósito da IVG, como diz que lhe chamam “os mais assépticos”.

O primeiro dia

SIM NO REFERENDO, com uma equipa de luxo: Carlos Abreu Amorim, Daniel Oliveira, Fernanda Câncio, Helena Matos, Ivan Nunes, Joana Amaral Dias, Luís M. Jorge, maradona, Miguel Vale de Almeida, Pedro Adão e Silva, Ricardo Araújo Pereira, Rui Tavares, Vasco M. Barreto e Vasco Rato. Outros virão.

"Caminhada Pelo SIM"



Carlos Alberto


Domingo, 21 de Janeiro às 10h30, na marginal de Matosinhos

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Fazer bem sem olhar a quem





Quem costuma utilizar o Metro de Lisboa já se habituou a encontrar as estações fechadas. Nos últimos seis meses, isso aconteceu por oito vezes. Parece que o que opõe os sindicatos ao conselho de gerência da empresa é coisa pouca: os sindicatos estão tão contentes com o actual acordo de empresa que só pretendem a alteração de uma cláusula do acordo: a que permita prorrogar a sua vigência até 2011.

Há no entanto uma outra razão de peso para a realização de greves em catadupa. Hoje, o proverbial Diamantino Lopes, da FESTRU, explicou-a: “existem matérias incontornáveis que [os sindicatos] não estão disponíveis a alterar, como as que dizem respeito à segurança dos passageiros”. É isso, como é que há ainda passageiros que resmungam por não poderem apanhar o Metro logo pela manhãzinha? É pela segurança de todos nós que o Sr. Diamantino não cede à “mesa das negociações”.

Hei-de voltar ao acordo de empresa do Metro. Entretanto, saiba-se que, se o Dr. Cluny decretou uma greve para defesa dos interesses do povo, o Sr. Diamantino o faz em nome da “segurança dos passageiros”. Greves filantrópicas é o que é.

Será que conseguem?

Noronha do Nascimento, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, queixou-se à revista Visão (hoje publicada): “Estão a querer fazer de mim um sobredotado”.

Da série "Frases que impõem respeito" [44]


      Procurador-geral da República, na Assembleia da República

Sempre contra a corrupção!


Maria José Morgado descobriu um argumento, no mínimo original, para defender a interrupção voluntária da gravidez. O aborto clandestino provoca a corrupção. Como uma modesta contribuição para esta luta, deixo aqui as seguintes hipóteses: o homicídio, as ofensas corporais, a violação, o sequestro, o roubo, o furto e vários outros crimes podem também contribuir para a corrupção. A própria corrupção, segundo alguns entendidos, também contribui para a corrupção.

Portanto…

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Blogue recomendado

A ultrapassagem


Afinal, Cândida Almeida está condenada a continuar no DCIAP. Não obstante o fogo-de-artifício lançado quando foi graduada para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), à medida que o tempo passa a valorosa procuradora-geral adjunta anda para trás, em vez de andar para a frente.

Conta hoje o Público que o ingrato ex-procurador-geral da República, numa — essa, sim — autêntica Operação Furacão, ultrapassou-a, tendo sido colocado em primeiro lugar na lista de magistrados do Ministério Público à espera de colocação no STJ.

De Souto Moura espera-se uma grande contribuição para a jurisprudência, sobretudo quanto a crimes de violação do segredo de justiça, em que ganhou uma justa reputação, e em matéria de escutas telefónicas e facturações detalhadas.

Cândida Almeida não deve desesperar. A sua hora chegará. Sobretudo se não houver mais nenhum interessado.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Und Carlos Loureiro - Acerca da expressão “misóginos e fundamentalistas”

Meu caro Carlos Loureiro:


Reconheço que nem todos os adeptos do “Não” são “misóginos e fundamentalistas”. Aquilo que eu disse, e repito, referindo-me ao Prof. Mário Pinto, é que considero misógina a visão de quem acha que a despenalização do aborto até à décima semana gera nas mulheres grávidas a decisão de abortar por tudo e por nada — ou, pior ainda, recorrendo às próprias palavras do docente da Católica (postas em relevo por Helena Matos): “se as reais razões da mulher para abortar não precisam de ser invocadas, então poderão elas ser quaisquer: desde razões sérias, a razões perversas; desde reais dificuldades, até caprichos, negócios, feitiços, vinganças, crueldades, tudo.

Esta visão ignora o que há de mais profundo na maternidade e o que há de mais dramático no aborto.

Quanto à questão do fundamentalismo, tenho de repetir, com pena, que considero que incorrem nele todos aqueles que, defendendo o “Não” no referendo, querem impedir os outros de exprimir a opinião contrária, através do voto democrático, ainda para mais quando já houve um referendo anterior.

Für Mafalda





Recapitulemos: andava eu entretido a acompanhar a conversa entre a “nossa” Mafalda e Fernanda Câncio, quando vejo sucessivos apelos da adepta do “Não” para “discutir direito”. Pareceu-me uma boa ideia, pelo que decidi participar. A Mafalda respondeu-me de uma forma polida — na sua caixa de comentários. E, mandando inesperadamente o direito às urtigas, lançou um novo desafio para a blogosfera: “deixe de se situar no plano do direito positivo e tente situar-se a montante no plano de política criminal.

Vamos por partes, cara Mafalda:

    1. Não é por serem mandamentos que certas condutas não poderão ser crimes? Pois claro. Nem isso, nem o contrário. Por exemplo, acha a Mafalda, que eu suspeito não ser versada em assuntos religiosos, que se deveria punir quem não amasse a Deus, porque o 1.º Mandamento manda amar a Deus sobre todas as coisas?

    2. Antes das 11 semanas, o problema é só religioso e depois deixa de o ser? Quem disse isso, Mafalda? Até à décima semana, o aborto continua a ser crime quando for cometido contra a vontade da mulher grávida. Não é preciso mais para demonstrar que, mesmo em direito penal, a vida intra-uterina continua a ter valor até à décima semana.

    No caso de a mulher grávida pretender interromper a gravidez, há um conflito, sendo uma solução contraproducente, no plano da política criminal que evoca, punir a mulher grávida. Não diminui o número de abortos e põe em causa outros bens jurídicos.

    3. Desculpe dizê-lo em público, mas acho que é a Mafalda que não compreende o artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal. Este artigo consagra a teoria da impressão a propósito da tentativa impossível. O agente é punido quando não for manifesta a inexistência de objecto do crime.

    No caso da pílula do dia seguinte, mesmo que não haja óvulo fecundado, o agente pensou que existia e não era evidente para qualquer pessoa o contrário. Por isso, para a tal doutrina que foi buscar ao Comentário Conimbricense do Código Penal (mas que não corresponde ao pensamento do Prof. Figueiredo Dias, que é o comentador dessa parte do código, e que a Mafalda não cita porque não lhe convém), segundo a qual há aborto mesmo antes da nidação, a pílula do dia seguinte deveria ser considerada, no mínimo, como uma tentativa impossível de aborto punível.

    Para isso bastaria decretar a punibilidade da tentativa, derrogando a regra geral do n.º 1 do artigo 23.º (segundo a qual a tentativa só é punível se ao crime consumado corresponder pena de prisão superior a três anos).

    Este é o pensamento consequente partindo da perspectiva da Mafalda. Mas a Mafalda é errática. Quando chega a este ponto, enterra o direito e dá um pulo para a política criminal. Estou a vê-la a escrever furiosamente no computador, quando um gato fedorento lhe agarra o pé e segreda: “Diga agora uma treta qualquer.” E a Mafalda diz…

    O pequeno problema, cara Mafalda, é que essa tal política criminal deveria levá-la a votar “Sim” no referendo. Mas, se a Mafalda entende que o valor da vida é tão grande que devia levar à punição das mulheres, por que não penalizar a pílula do dia seguinte?

    4. Sobre o legalismo, Mafalda, vamos lá respeitar a Constituição. Em direito penal, o princípio da legalidade proíbe a analogia (artigos 29.º da Constituição e 1.º do Código Penal).

    Quando alguém diz que há aborto antes da nidação, viola o princípio da legalidade, porque o Código Penal fala em vida intra-uterina. Vida intra-uterina quer dizer mesmo vida intra-uterina. Se quiser sair da conversa da legalidade, leia o número anterior deste post.

O trapezista



Seurat, O Circo, 1890



Marcelo Rebelo de Sousa comunica no Sol que recebeu uma carta de Diogo Freitas do Amaral. O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros recorda uma frase de Marcelo sobre a sua saída do Governo: “foi um erro de casting, prontamente corrigido”. Freitas, na carta, conclui que Marcelo o acusou de “ser mentiroso”, por não aceitar que saiu do Governo por sua iniciativa e por razões de saúde, como na altura esclareceu. Em consequência, Freitas suspendeu as suas relações de amizade com Marcelo, até à retractação pública deste.

Como reagiu Marcelo? Ei-lo sobre o trapézio: “A correcção do erro de casting a que eu aludira era objectiva (pelos acontecimentos) …”. Marcelo mostra aqui que compartilha os desígnios insondáveis da Divina Providência. Freitas saiu para uma correcção objectiva do erro de casting, que foi causada pelos seus problemas de coluna. É difícil compreender? Nem tanto…

A política externa de Freitas do Amaral era excessivamente europeísta, punha em causa as relações com a administração Bush, portanto Deus encarregou-se de o remover do cargo, castigando-o com uma doença de coluna e obrigando a sujeitar-se a uma operação.

Marcelo continua dizendo que faz (muito gostosamente) o esclarecimento: “Esclareço que aceito, sem reservas, que Diogo Freitas do Amaral saiu pelo seu pé e por razões de saúde.”

Pois claro, Marcelo acha que entre dizer que Freitas foi um erro corrigido ou que saiu por razões de saúde não há contradição nenhuma. Melhor saída do que esta, só me recordo da retractação do Dâmaso de Eça de Queiroz.

PS — Registe-se ainda como Marcelo trata um velho amigo de “décadas”. Se Marcelo é assim com os amigos, com os inimigos o que se pode esperar? Tortura?

Mafalda, a contestatária



[clique na imagem para a aumentar]



O Cardeal Patriarca, D. José Policarpo, não poderia ter arranjado representante mais extravagante do que a contestatária Mafalda para falar por si na blogosfera. Mafalda é prolixa e combativa. Tenho de concordar até que sabe algum direito. Mas assimila mal as coisas. Fala pela rama e não é capaz de raciocinar em profundidade quando é preciso.

Que diz Mafalda? Veja-se:

1. A interrupção voluntária da gravidez é uma questão religiosa, mas não é só religiosa. Pois claro! Aí joga-se uma contradição conhecida. A Igreja parte da ideia de que a vida, logo após a fecundação, é um bem sagrado porque é concebida por Deus, mas não pode assumir, numa sociedade laica, esse pressuposto. Por isso, a Igreja modifica a sua linguagem e serve-se de argumentos científicos (de preferência argumentos médicos) para intervir na discussão.

Sempre que o faz, jura a pés juntos que a questão da interrupção voluntária da gravidez não é um problema religioso. Mas, então, por que razão intervém como Igreja? A que título se trata do tema nas homilias dominicais? Claro que a azougada Mafalda não vê contradição nenhuma em tudo isto. Mas eu vejo.

2. Também não vê Mafalda contradição entre a admissibilidade da pílula do dia seguinte e a punição da interrupção voluntária da gravidez. Mas devia ver essa contradição. É que a pílula do dia seguinte actua sobre óvulos já fertilizados, antes da nidação. Ora, coerentemente para a Mafalda, a vida tem tanto valor nesse momento como depois da implantação no útero materno.

Claro que a lei penal não vai por este caminho. Ao contrário do que Mafalda afirma, não é uma questão de “doutrina maioritária”. A lei diz claramente que o aborto é um crime contra a vida intra-uterina. Alô, Mafalda, vida intra-uterina quer dizer vida dentro do útero, está bem?

Além disso, Mafalda, como a senhora é especialista em direito, não confunda “bem jurídico” com “objecto de acção”. “Bem jurídico” existe sempre, mesmo numa tentativa impossível de homicídio, que seja punível ao abrigo do artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal. O que Mafalda quer dizer é que, na pílula do dia seguinte, não se pode provar que haja “objecto da acção”, o que não impediria a punição por tentativa (se a tentativa fosse punível nos termos gerais). Não tem de quê, Mafalda. Escusa de agradecer esta reciclagem gratuita.

É claro que a Mafalda sempre pode ir dizendo que, no caso da pílula do dia seguinte, nunca se prova que haveria um óvulo já fecundado. Mas era coerente com as suas posições fundamentalistas que se previsse até a punição da mulher grávida por tentativa. Vamos fazer uma campanha por isso, Mafalda?

3. Mafalda, especialista em espantar-se com o que mil pessoas antes de si já descobriram, vem dizer que os adeptos do “Sim” não conseguem explicar a fronteira das dez semanas. Conseguem, Mafalda. O óvulo fecundado vai-se desenvolvendo. Às 12 semanas forma-se a estrutura cerebral e às 20 semanas começa a actividade cerebral superior. Neste trajecto há uma realidade biológica que se vai desenvolvendo.

Não sabe a Mafalda que o aborto não é punido tão gravemente como homicídio? Acha a Mafalda que, no caso de conflito entre a vida da mãe e a do feto, o médico e o pai podem decidir livremente o que fazer? É óbvio que não, Mafalda! Apesar da vida ter sempre valor, um ser autónomo não vale o mesmo que um óvulo fecundado.

4. Vamos ao essencial, Mafalda. O essencial é que não basta provar que a vida intra-uterina é valiosa para demonstrar que o aborto deve ser sempre punido. O direito penal rege-se pelo princípio da subsidiariedade. Só deve intervir quando isso é necessário e útil para defender bens jurídicos. Assim, as perguntas a que a Mafalda tem de responder são estas:

    • Está convencida de que haverá mais casos de interrupção voluntária da gravidez se o “Sim” vencer?
    • Aceita que as mulheres, na sequência da despenalização, vão sofrer menos?
    • Partindo do princípio de que a pena de prisão não é aplicada, concorda com um direito penal simbólico (que, porém, causa malefícios às mulheres)?

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Mais do mesmo

Mário Pinto, professor da Universidade Católica, critica, no Público de hoje, a decisão do Tribunal Constitucional sobre o referendo. Este adepto do “Não” não se limita a defender o “Não”. Considera que aqueles que defendem o “Sim” no referendo nem sequer deveriam poder exprimir a sua posição.

Depois de uma lenga-lenga intragável, em que a pretensão anda aliada à ignorância jurídica, defende que não deveria haver nenhum referendo, porque aquilo que se está a perguntar é se estamos de acordo com “uma total liberalização do aborto até às dez semanas, por vontade discricionária e incontrolada da mulher grávida”.

É claro que, nesta visão misógina e fundamentalista, a mulher grávida surge como uma emanação de Belzebu, sempre disposta a matar uma nova alma antes de nascer. Apesar dos longos anos de vida, talvez não seja tarde para Mário Pinto aprender que o acto de interromper uma gravidez é um acto doloroso e dramático para a mulher grávida, que ela não toma de ânimo leve.

Mas vamos falar do problema jurídico. O Prof. Mário Pinto, licenciado pela Faculdade de Direito de Coimbra, deveria ter um pouco mais de modéstia nas suas alegações jurídicas. Recomendo-lhe a leitura do que escreveu o Prof. Figueiredo Dias, um verdadeiro mestre de direito penal, no Comentário Conimbricense do Código Penal, a propósito do artigo 142.º. Defende o Prof. Figueiredo Dias que é viável “sem receio do juízo de inconstitucionalidade, um sistema misto de prazo e indicações” [Tomo I, p. 173], tal como aquele que está agora em debate. Ensina o professor de Coimbra que, em geral, não é obrigatório incriminar condutas à luz da Constituição, salvo se a lei prevê expressamente a obrigação de criar um crime (como sucede no artigo 177.º).

Portanto, o Prof. Mário Pinto que reveja as suas afirmações erradas quanto aos seguintes aspectos:

    1. Nem sequer a inviolabilidade da vida humana obriga a considerar crimes todos os atentados contra a vida.

    2. O homicídio é justificado em legítima defesa e conflito de deveres.

    3. Nunca o homicídio e o aborto foram tratados da mesma forma em direito penal.

    4. No caso de aborto não punível durante as primeiras dez semanas, há um efectivo direito que colide com a vida intra-uterina, que é o direito à liberdade (independentemente do valor que o Prof. Mário Pinto lhe atribua).

    5. O valor da liberdade é até mais fácil de perceber do que aquilo que está em causa, no plano axiológico, no caso da “indicação eugénica” (em que se pode interromper a gravidez, até à 24.ª semana, quando já começou a actividade cerebral superior, por haver doença grave ou malformação congénita do feto) [artigo 142.º do Código Penal].

    6. O facto de as mulheres não serem normalmente punidas no caso do aborto consentido prova a má consciência da sociedade. E essa situação é insustentável a prazo, porque o direito penal não serve para saciar as convicções morais de uma parte da sociedade.

    7. É mais do que evidente que o número de interrupções voluntárias da gravidez não sofrerá alterações sensíveis se o “Sim” vencer. O que diminuirá drasticamente será o número de abortos clandestinos, com todo o seu cortejo de mortes e ofensas graves das mulheres grávidas, incluindo a esterilidade (certamente pormenores, na opinião do Prof. Mário Pinto).

    8. Uma sociedade democrática é uma sociedade da dúvida e do respeito pela opinião do outro — e não de certezas dogmáticas e inquisitoriais. É inadmissível que adeptos do “Não” considerem ilegítimo que outros tenham um entendimento diferente e o possam exprimir, ainda por cima quando há um precedente, em que os adeptos do “Não” venceram e os seus opositores, em maioria na Assembleia da República, e, apesar do referendo não ter sido vinculativo, respeitaram o resultado do anterior referendo.

    9. Para que se não confundam conceitos (despenalização, liberalização, justificação, etc.), resta dizer que o que está em causa é a não punição da interrupção da gravidez, nunca uma obrigação de abortar seja em que circunstâncias for, e se protege o direito de objecção dos médicos.

    E é claro que a despenalização está ligada a uma autorização legal de interromper a gravidez em estabelecimentos de saúde, mas não poderia ser de outra maneira, sob pena de se condenar a um risco para a vida ou de ofensa à integridade física grave a mulher grávida.

    10. Os médicos já explicaram bem esta questão, quando perguntaram aos adeptos do “Não” se acham que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) deveria recusar tratamentos aos fumadores que contraiam cancro, aos automobilistas acidentados devido a excesso de velocidade ou até, acrescento eu, a um assaltante que seja ferido ao cometer um roubo.

    De resto, a própria mulher que praticou um aborto clandestino pode recorrer ao SNS para se tratar (quando não o faz é por medo de represálias penais).

Resumindo: um pouco de caridade cristã não faz mal a ninguém, mesmo quando se pensa no SNS.