quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Estado de direito

Alf Ross, reputado jurista e filósofo dinamarquês, escreveu em tempos, sobre o Direito Natural: “Como uma prostituta, o Direito Natural está à disposição de todos. Não há ideologia que não possa ser defendida recorrendo-se à lei natural” (in Direito e Justiça, tradução brasileira, São Paulo, 2003, pp. 304-305).

Ora, por estes dias, parece passar-se o mesmo com o “Estado de direito”. A sua invocação serve para tudo. Para defender os direitos fundamentais e para os atacar. Os mesmos que se escandalizam com a suposta violação do Estado de direito por via de alegadas compressões à liberdade de expressão são aqueles que qualificam de atentado ao Estado de direito a intervenção do poder judicial em defesa de direitos fundamentais como a intimidade da vida privada e o primado da justiça.

Em que ficamos, afinal? Invoca-se o sacrossanto Estado de direito para defender a liberdade de expressão, mas este mesmo conceito já não serve para defender outras liberdades? Pior, chega-se mesmo ao ponto de considerar que a legítima actuação das autoridades judiciais em defesa do Direito é … um acto de censura (!), logo, um atentado ao Estado de direito!

É preciso ter em atenção que o que está em causa numa providência cautelar não é uma decisão do poder, é uma decisão dos tribunais. Não é uma intromissão censória do executivo, é uma sentença (preliminar) da justiça que visa tutelar e proteger os valores que enformam o nosso ordenamento jurídico. Não é um acto totalitário ou autocrático, é o resultado de um julgamento (ainda que sumário) em que se ponderam e balanceiam direitos e interesses contrapostos, valorando-os e actuando para fazer face ao perigo iminente de lesão de bens jurídicos maiores.

Os tribunais existem para defender os direitos e as liberdades. Quando passarmos a atacar os tribunais por estes defenderem os direitos e as liberdades, então, sim, estará em perigo o Estado de direito. O Estado de direito não serve apenas para enchermos a boca com ele quando nos dá jeito ou quando vem em defesa das nossas liberdades, atacando-o quando não nos dá jeito ou quando vem em defesa dos direitos dos outros.

Como aqui magistralmente se explica, “a providência cautelar não é ordenada por um bando de jagunços mas por um juiz, verificados determinados pressupostos (nomeadamente o de um fundado receio de um direito gravemente lesado e dificilmente reparável). Apesar de todos os seus defeitos, a justiça é a última arma que temos para salvaguarda dos nossos direitos e liberdades. Sem ela, resta-nos a justiça privada ou, como tantos parecem desejar, a justiça da praça pública”.

De resto, assistiu-se durante o dia de hoje a uma tentativa de arvorar os jornalistas em resistentes, numa cruzada dramática contra a opressão (aqui, por exemplo). Mas é preciso ter muito cuidado com estes repentes épicos porque, nesta história, os supostos “opressores”, ou seja, aqueles a quem se pretende resistir são os tribunais, que são — isso sim — os verdadeiros e últimos garantes do Estado de direito.

Ou será que o Estado de direito só é bom quando é em nosso favor? E aquilo que não é do nosso agrado é necessariamente uma violação do Estado de direito?

Não, o conceito de Estado de direito não pode servir para tudo e mais alguma coisa, ao sabor do que mais nos convém. E, sobretudo, não podemos ver nos tribunais os carrascos do Estado de direito. No dia em que isso acontecer teremos subvertido o conceito de Estado de direito.

1 comentário :

Anónimo disse...

Qual destes jornalistas valentões e defensores da liberdade de informação, alguma vez participou nalguma acção antes do 25 do 4.
Sendo que alguns deles são da minha idade, e não me recordo de os ver nas acções em que participei!!!