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domingo, junho 14, 2015

Desvio inquisitorial

• Fernanda Palma (professora catedrática de Direito Penal), Desvio inquisitorial:
    «No essencial, o processo penal português está bem construído. A sua estrutura contempla os princípios fundamentais do Estado de direito democrático e consagra com equilíbrio as garantias da defesa. Todavia, a prática revela, com alguma frequência, um desvio inquisitorial. Tal desvio manifesta-se, sobretudo, em dois traços essenciais: práticas de pseudofundamentação e hipervalorização da atitude do arguido.

    As práticas de pseudofundamentação revelam-se na dificuldade de descrever os factos com independência do enquadramento normativo. Um facto relevante em processo penal é um feito voluntário humano, reconhecível pelas outras pessoas e identificável na linguagem comum. Assim, a lei processual destaca a necessidade de a acusação relatar os acontecimentos e descrever as circunstâncias de tempo, lugar e modo.

    Por outro lado, a hipervalorização da atitude pode conduzir a uma visão totalitária que assume a pretensão inaudita de penetrar na consciência dos arguidos e dos condenados, distinguindo-os mais pela sua posição perante a Justiça do que por aquilo que fizeram. Corre-se o risco de transformar o Direito Penal da culpa pelo facto em Direito Penal do caráter, à semelhança do que sucede no ‘Estrangeiro’ de Camus.

    Estas deficiências, se transformadas em rotinas judiciais, promovem uma transformação da estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32º da Constituição, em estrutura inquisitorial. A fundamentação das decisões passará, então, a ser puramente formal e irrecorrível – por exemplo, dir-se-á que o arguido cometeu um crime descrevendo os seus elementos legais e não os factos que o corporizam.

    No caso Sócrates, a defesa tem sustentado, em substância, que são estes os vícios do processo. Averiguar da procedência ou improcedência da crítica, nesse processo concreto, só será possível quando a acusação for tornada pública. No presente estádio, apesar das notícias que têm vindo a público, o segredo de justiça torna qualquer opinião mais uma questão de fé do que o resultado de um convencimento racional.»

domingo, maio 31, 2015

«O caminho a seguir devia ter sido criar um dever de declarar
bens e rendimentos e criminalizar a sua violação»


• Fernanda Palma, Novo Enriquecimento:
    «A Assembleia da República aprovou ontem uma lei que criminaliza o enriquecimento injustificado. O crime consiste em "adquirir, possuir ou deter património incompatível com os rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados" e pode ser praticado por qualquer pessoa, embora as penas, cujo máximo vai até oito anos de prisão, sejam agravadas para titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos.

    Mas existe um precedente que torna a medida duvidosa. Por acórdão de 4 de abril de 2012, o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional uma lei que previa o crime de enriquecimento ilícito. A lei nunca entrou em vigor, porque o Presidente da República pediu a fiscalização prévia da constitucionalidade e a votação do acórdão foi categórica: só se registou um voto de vencido e mesmo esse foi parcial.

    Esta decisão do Tribunal Constitucional nem sempre é compreendida pela opinião pública. Afinal, um político (ou outra pessoa) que exibe uma fortuna inexplicável não pode ser obrigado a provar a sua origem, sob pena de ser sancionado? A dificuldade reside em a nossa Constituição consagrar o direito ao silêncio e a presunção de inocência do arguido e atribuir à acusação o "ónus da prova" em processo penal.

    Em 2012, o Tribunal Constitucional entendeu ainda que não havia um bem jurídico claramente definido. Agora, a lei afirma que o crime atenta contra o Estado de Direito. Duvido de que essa proclamação baste. Porém, o maior problema resulta de a norma legal configurar um estado de coisas e não um facto. O caminho a seguir devia ter sido criar um dever de declarar bens e rendimentos e criminalizar a sua violação.

    No entanto, se a lei entrar em vigor, uma última questão que se coloca é a do seu âmbito de aplicação temporal, que deveria ser limitado pela proibição constitucional de retroatividade das normas que preveem crimes e penas. Se o crime for punível abstraindo do facto que originou o enriquecimento, a lei poderá ser aplicada ao passado e o procedimento criminal não estará sujeito a um regime de prescrição

domingo, abril 19, 2015

Aborto e eleições

• Fernanda Palma, Aborto e eleições:
    «Deverá a neocriminalização do aborto ser discutida na próxima campanha eleitoral e remetida para o plano das opções partidárias? Por razões políticas, éticas e de bom senso, impõe-se uma resposta negativa. Não será prudente associar a questão às opções partidárias e torná-la um critério de escolha de uma maioria e de um governo, anulando o debate sobre alternativas e soluções para a política geral do País.

    Dada a sua importância para a definição do sentido da vida, a questão do aborto é tão profunda que nada mais se poderia discutir ou então seria banalizada pelos partidos conforme as conveniências, para conquistar o eleitorado. É verdade que a criminalização do aborto tem uma dimensão política – tal como a eutanásia –, mas isso não significa que deva fazer parte de um "pacote". Merece um tratamento por si.

    Por outro lado, tem havido uma visão transversal que separa a questão penal do plano ético e religioso. A tese moderada que prevaleceu na resposta ao referendo e na jurisprudência do Tribunal Constitucional apenas indica que a criminalização não é a solução necessária para o aborto praticado nas primeiras dez semanas de gravidez. Porém, isso não significa que o Direito não deva proteger a vida nessa fase.

    Seria pouco transparente que a questão do aborto, não tendo assumido nenhum protagonismo durante a legislatura, viesse tornar-se prioritária neste momento, perante a possibilidade de uma alteração política. E seria especialmente grave que a campanha eleitoral servisse para uma abordagem confessional, com as Igrejas a participarem na disputa, gerando ódios partidários e promovendo a desintegração dos fiéis.

    No plano ético, seria injusto (sobretudo para os mais atingidos pela austeridade, que podem passar por situações de grave conflito) considerar decisivas razões de oportunidade, como o financiamento do serviço nacional de saúde ou a quebra da natalidade. As questões da ética da vida merecem ser debatidas durante toda a legislatura e não à porta de eleições. Seja qual for a posição que se perfilhe sobre elas.»

domingo, abril 12, 2015

«A punição do homicídio não esconde
o estado de vazio em que caiu a sociedade portuguesa»

• Fernanda Palma, O pai que embala o berço:
    «(…) Pode um alcoólico ou toxicodependente, desempregado e perturbado tomar conta de uma criança só por ser seu pai? Numa sociedade em que os pais são donos dos filhos, pode.

    Porém, uma sociedade que debate a criação de listas de pedófilos em nome da proteção das crianças tem de adotar políticas eficazes de apoio às famílias. A punição do homicídio não esconde o estado de vazio em que caiu a sociedade portuguesa.»

domingo, março 29, 2015

Caixa negra


• Fernanda Palma, Caixa negra:
    «(…) Ainda não existem dados consistentes sobre eventuais distúrbios de personalidade do copiloto, que seriam essenciais para fundamentar a inferência feita pelo Procurador de Marselha, para além de qualquer dúvida razoável. Uma comunicação tão veemente e rápida, invulgar nos acidentes de aviação, produz pavor quanto à origem da ameaça (a tripulação), mas tranquilidade quanto à qualidade técnica dos aviões. (…)»

domingo, março 22, 2015

Lógica pastoril

      «Vender cabritos sem ter cabras não prova por inferência a prática de crimes de corrupção»

Antigos Paços de Audiência e Fresco do Bom e Mau Juiz (Monsaraz)

• Fernanda Palma, Lógica pastoril:
    «Segundo a comunicação social, o acórdão da Relação de Lisboa sobre o caso Sócrates resumiu a sua convicção sobre os indícios fortes de crimes de corrupção através do provérbio "quem cabras não tem e cabritos vende de algum lado lhe vêm". Tal lógica, própria de uma sociedade tradicional, manifesta-se deficitária numa sociedade de conhecimento, em que as causas dos fenómenos se podem revelar mais complexas.

    É falacioso o argumento ‘ad ignoratiam’, em que se conclui que há fantasmas se não se provar que não existem. Pode haver quem não tenha cabras mas tenha crédito, como já aconteceu a Portugal e aos portugueses. Por outro lado, não julgo que um tribunal possa invocar um dia o provérbio "com um olho no burro, outro no cigano" para justificar medidas especiais de vigilância sobre pessoas de determinada etnia.

    Baste a quem basta o provérbio e não creio que baste ao Direito. A lógica pastoril revela que há indícios de que Sócrates praticou atos de corrupção, mercadejando as funções públicas, ou apenas que o dinheiro envolvido teria de ser seu e não pode ter sido dado ou emprestado? Essa lógica pode apontar para indícios, mas especifica um crime. É adequada à investigação mas insuficiente para formular a acusação.

    Talvez tal lógica fosse suficiente para um crime que pressupusesse a inversão do "ónus da prova", como o famoso enriquecimento injustificado, inexistente no momento da prática dos factos. No crime de corrupção, cabe ao Ministério Público demonstrar que o dinheiro foi recebido para uma certa disponibilização dos poderes públicos. Os princípios da presunção de inocência e ‘in dubio pro reo’ assim o impõem.

    Vender cabritos sem ter cabras não prova por inferência a prática de crimes de corrupção, salvo se entendermos que o vendedor não pode ter deixado de receber os cabritos para praticar atos ou omissões contrários aos deveres do cargo, no conjunto de mundos possíveis. Porém, nesse caso, estará em causa uma questão de direito sobre o valor da prova e os limites da incriminação e não uma mera questão de facto

domingo, março 15, 2015

«Haverá um critério normativo inconstitucional
se, expirado o prazo legal para o reexame,
o arguido se mantém preso no segundo seguinte»

• Fernanda Palma, O segundo seguinte:
    «Segundo Ronald Dworkin (filósofo do Direito norte-americano falecido recentemente), há casos que não se resolvem só pela interpretação semântica da lei, reclamando a integração num conjunto coerente de valores por juízes "hercúleos". Um exemplo: quem assassinar a pessoa de que é herdeiro, herdará se a lei nada disser? O princípio de que o crime não pode aproveitar ao criminoso impõe a resposta negativa.

    No caso Sócrates, está agora em causa, para além da competência do tribunal, se é legal a manutenção do arguido em prisão preventiva sem que o juiz de instrução tenha proferido despacho de reexame no prazo máximo de três meses. E questiona-se se tal prazo pode ser violado para dar ao arguido a possibilidade de exercer o contraditório, pronunciando-se sobre novas provas carreadas pelo Ministério Público.

    A ausência de decisão no prazo para o reexame da prisão preventiva não mantém em vigor, por inércia, a decisão anterior. O caráter imperativo do artigo 213º do Código de Processo Penal indica que se trata de um prazo de garantia. Se o tribunal não confirmar a decisão inicial findos três meses, gera-se um vazio que só pode significar que não existem condições processuais para manter a prisão preventiva.

    Não vale o argumento de que a não decisão do tribunal se justifica pelo contraditório e, em última análise, pelo interesse da defesa. Com efeito, o contraditório é uma garantia da defesa, essencial para uma decisão justa. Porém, a impossibilidade de ser exercido no prazo de três meses não dispensa o tribunal de reexaminar atempadamente a prisão preventiva, sem prejuízo de considerar no futuro novas provas.

    A tese de que o exercício de direitos justifica, sem o reexame obrigatório, a manutenção da prisão preventiva não se integra no sistema de valores constitucionais. Haverá um critério normativo inconstitucional, por violação da natureza excecional da prisão preventiva, na base das decisões de adiamento das quais decorra que, expirado o prazo legal para o reexame, o arguido se mantém preso no segundo seguinte

domingo, março 01, 2015

O dever da dúvida

• Fernanda Palma, O dever da dúvida:
    «Há, no processo de José Sócrates, uma dúvida insuperável. Tal dúvida antecede a que se refere à verdade dos factos e tem a ver com o modo como se fundamenta a prisão preventiva. Se a relação entre factos e juízos de valor é essencial, não é visível para os juristas, e menos ainda para os leigos, uma fundamentação que documente em factos objetivos e consensuais o perigo de fuga ou de perturbação do inquérito.

    Na verdade, está apenas em causa um juízo de perigo, que incide sobre uma mera probabilidade (embora elevada). Mas em que se fundamenta essa probabilidade? Em circunstâncias objetivas conhecidas ou em simples apreciações da personalidade do arguido? Há comportamentos que demonstrem um objetivo de fuga ou uma probabilidade real de o arguido destruir provas ou interferir com testemunhas fora da prisão?

    Para além das dúvidas acerca do juízo e sobre a lógica da decisão (segue um modelo conhecido?), a prisão preventiva não se pode fundamentar na revolta do arguido, no contexto político que o envolve ou na sua posição moral perante o processo. Estas questões não são postas entre parênteses com o argumento de que há um dever de confiança nos tribunais, com um discurso de oráculo ou com fugas de informação.

    A confiança na justiça só pode ser alimentada pela comunicação pública, transparente, refletida e fundamentada de decisões sobre direitos fundamentais. Se não se tem conseguido explicar com exatidão e clareza duas ou três razões sólidas, factuais e lógicas (e não meras conclusões) que justificam a manutenção da prisão preventiva, o dever para com a justiça passa a ser não o de confiança mas sim o de dúvida.

    A dúvida não tem nada a ver com gostos pessoais nem se coloca no mesmo plano da dúvida sobre o significado do que Sócrates terá feito. Esta dúvida sobre a necessidade da prisão preventiva é prévia. Com efeito, a solução justa de um caso pressupõe a verdade dos factos, mas essa verdade pressupõe que quem os define se sujeite a regras de autocontrolo e de justificação sobre as quais não possa haver dúvida

domingo, fevereiro 15, 2015

Culpa interior

Fernanda Palma escreve sobre Culpa interior:

Hoje no Correio da Manha
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domingo, fevereiro 08, 2015

Negociar a Vida

• Fernanda Palma, Negociar a Vida:
    «(…) Havendo prescrição clínica, os próprios hospitais poderiam (e deveriam, numa lógica de direito de necessidade) ter passado por cima da burocracia e obtido diretamente o medicamento. Porém, a responsabilidade política do Estado e dos seus agentes não se dissolve no contexto amplo da negociação com a empresa, pois é inaceitável fazer esperar pelo melhor preço doentes que carecem do medicamento com urgência.

    Os entraves a que a doente falecida acedesse ao medicamento devem ser investigados pelo Ministério Público. Em última análise, a não diminuição do risco para a vida pode fundamentar um homicídio por omissão, provavelmente a título de negligência. A cadeia causal é complexa e difícil de apurar, mas quem teve o domínio do facto não pode invocar apenas uma transferência ou diluição das suas responsabilidades.

    Porém, a raiz de um eventual problema penal é política e ética. É admissível que um Estado que consagra o estado de necessidade coloque os cidadãos em situações de extrema necessidade em que nada lhes pode exigir? Certo é que tanto a atuação do Governo como a resposta da oposição foram fracas. Foi um doente, com a força do desespero, que acordou o Parlamento, substituindo a linguagem ritual dos Deputados.»

domingo, janeiro 18, 2015

O nosso Islão

• Fernanda Palma, O nosso Islão:
    «A ideia de luta entre o bem e o mal ou entre civilizações antagónicas é uma visão limitada e perigosa do terrorismo islâmico. Os terroristas que praticaram os atentados em França eram cidadãos franceses, embora não desfrutassem plenamente da sociedade francesa. Filhos de imigrantes, nascidos em famílias desestruturadas e órfãos com passado delinquente, foram os alvos fáceis de um processo de radicalização. (…)»

domingo, janeiro 04, 2015

Partidos penais

• Fernanda Palma, Partidos penais:
    «(…) a Justiça Penal do Estado de Direito tem de corresponder à necessidade de proteção de bens jurídicos essenciais e assegurar o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias processuais. Qualquer "partido penal" que ignore tais exigências violará a Constituição.»

domingo, dezembro 28, 2014

«A liberdade individual é um assunto público que a todos diz respeito,
por ser a base de um Estado que reconhece
a essencial dignidade da pessoa humana»


• Fernanda Palma (professora catedrática de Direito Penal), Cultura carcerária:
    «Está a tomar-se consciência de que vivemos numa cultura que vê na prisão a solução de todos os problemas individuais, sociais e políticos. A ideia de que reina a impunidade gera decisões difíceis de aceitar, como a prisão preventiva aplicada à avó de Alice (menina levada pelo pai ilicitamente para a Bélgica), que foi agora substituída por "prisão domiciliária".

    Perante as dúvidas que estes casos suscitam, é falacioso o argumento de que juristas ou leigos não devem fazer comentários por não conhecerem os processos. Uma vez que os processos não são públicos e estão sujeitos ao segredo de Justiça na maior parte das situações, valeria no nosso Direito uma regra de legitimação secreta da prisão preventiva.

    Ora, tal regra não tem sentido num Estado de direito democrático, porque a liberdade de qualquer pessoa não é assunto privado, nem se inscreve numa pura relação bilateral dessa pessoa com o Estado. A liberdade individual é um assunto público que a todos diz respeito, por ser a base de um Estado que reconhece a essencial dignidade da pessoa humana.

    De acordo com este princípio, consagrado no artigo 1º da Constituição, a tutela de direitos económicos e sociais não legitima restrições essenciais à liberdade. Todavia, perpassa pela nossa sociedade uma discussão constitucional a propósito do Direito Penal e há quem sustente que certos ideais de purificação ética justificam uma cultura punitiva.

    Esta discussão tem de ser assumida e legitimada. O que os intérpretes das leis não podem é reclamar a utilização de certos critérios e dar-lhes um conteúdo completamente diverso. É isso que parece suceder com a "perturbação do inquérito", que é pressuposto das medidas de coação e justifica, em casos extremos, a proibição de entrevistas públicas de arguidos.

    Terá cabimento, no caso da avó de Alice – já para não falar no caso de Sócrates –, entender que os contactos com a comunicação social podem comprometer a aquisição, a conservação ou a veracidade da prova? A personalidade do agente e a sua atitude perante o Direito, as leis e as instituições judiciárias serão o critério de uma previsível perturbação do inquérito?

    Em certos momentos, a falta de esperança coletiva abre espaço a uma visão autoritária e purificadora do Estado. Fórmulas inocentes da doutrina servem então de alçapões à cultura carcerária. E podemos ser confrontados com as infinitas acusações provisórias, absolvições temporárias e recursos nunca decididos de que nos deu conta Kafka no Processo

domingo, dezembro 21, 2014

«O reconhecimento da culpa não pode ser considerado
critério decisivo para uma saída precária»

• Fernanda Palma, O dilema de Cruz:
    «(…) A pena só pode almejar que o agente deixe de se predispor à prática de crimes. O reconhecimento da culpa não pode ser considerado o critério decisivo para a concessão de uma saída precária. Neste caso concreto, a decisão de impedir uma saída de Natal só pode justificar-se por se entender que a perigosidade do recluso ou o perigo de reincidência o desaconselham.

    Aliás, se a tese do condenado é a de que não praticou qualquer crime, estar-se-ia a comprar com saídas precárias a renúncia a um ponto de vista que, para ele, é fulcral. Mas, para além de tudo isso, um sistema de execução de penas que associa o Natal a uma extensão da punição do agente nada tem a ver com a cultura humanista que rodeia o Natal cristão.»

domingo, dezembro 14, 2014

Riqueza e crime

• Fernanda Palma, Riqueza e crime:
    «Se o crime de "enriquecimento ilícito", que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional, num acórdão em que apenas um dos seus treze juízes votou (parcialmente) vencido, estivesse previsto no Código Penal, a investigação dos processos mediáticos com que se confronta o sistema judicial estaria facilitada? E a decisão seria, previsivelmente, mais justa?

    Em casos de corrupção, fraude fiscal e branqueamento, a primeira dificuldade da investigação criminal pode ser descobrir o dinheiro e o seu proprietário. Ora, nessa perspetiva, a existência de um crime de enriquecimento ilícito pouco ou nada adiantaria. A maior dificuldade situa-se num estádio anterior, em que é necessário desvendar o circuito do dinheiro.

    Neste domínio, é oportuno recordar uma afirmação muitas vezes repetida mas frequentemente incompreendida: o Direito Penal é o último recurso da política criminal do Estado. Para prevenir a criminalidade económica e financeira, é essencial, antes de tudo, fiscalizar com eficácia a atividade bancária e financeira e extinguir os paraísos fiscais.

    Por outro lado, as penas propostas para o crime de enriquecimento ilícito (até três ou até cinco anos de prisão, no caso de funcionários) não eram, nem poderiam ser, tão severas como as cominadas para a corrupção, a fraude fiscal ou o branqueamento agravados. Nestes crimes, as penas podem ter o limite máximo de oito ou até de doze anos de prisão.

    Assim, o crime base de enriquecimento ilícito não admitiria escutas telefónicas nem prisão preventiva. E ao enriquecimento agravado, cometido por funcionário, só seria aplicável prisão preventiva no caso de se contemplar uma exceção ao regime geral, que reserva tal medida de coação aos crimes puníveis com pena de prisão de limite superior a cinco anos.

    Por conseguinte, o novo crime reprovado pelo Tribunal Constitucional não parece constituir o meio adequado para reforçar a luta contra a corrupção. No entanto, a objeção decisiva à criação desta nova incriminação continua a ser a presunção de inocência, associada à exigência de tipificação da conduta incriminada – e não só de uma sua possível consequência.

    A luta contra o enriquecimento ilícito passa pela previsão de deveres de declarar rendimentos e a sua proveniência, cuja violação pode ser punida com sanções idênticas às que se preconizavam para o novo crime. E, aliás, o "enriquecimento lícito" também pode resultar de condutas que merecem ser incriminadas, como a gestão danosa no setor privado.»

domingo, dezembro 07, 2014

Paradigmas de justiça

• Fernanda Palma, Paradigmas de justiça:
    «Os tribunais têm legitimidade para criar tendências sobre a punição dos comportamentos criminosos, abstraindo da sua gravidade e do grau de culpa do agente? Podem ser relativamente brandos a julgar crimes contra as pessoas (como o homicídio e a violação) e especialmente duros a julgar crimes contra o Estado (como a corrupção e a prevaricação), ou vice-versa?

    Estas tendências podem existir e ser observadas como facto sociológico. Porém, não passam de modas ou padrões comportamentais desprovidos de consistência normativa. É a própria Constituição que o impõe, nos artigos 1º e 18º, ao consagrar o princípio da culpa, que se deduz da essencial dignidade da pessoa humana, e o princípio da necessidade da pena.

    De forma muito precisa, o artigo 40º do nosso Código Penal (introduzido em 1995, por influência de um projeto alemão de 1966) estabelece que a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa, em nome da necessidade de prevenir futuros crimes. Ninguém pode ser punido de forma instrumental, para servir de exemplo na prevenção de futuros crimes.

    Por outro lado, a aplicação de penas, implicando a privação de direitos como a liberdade, está sujeita a um regime de máxima restrição e só se justifica pela necessidade de defender outros direitos ou interesses constitucionais. Não há fundamento para uma especial dureza punitiva, em função dos sentimentos populares ou das pré-compreensões dos tribunais.

    A ideia de um "mínimo de pena" para acalmar os sentimentos populares também é incompatível com o princípio da culpa. O senso comum não é um critério de justiça penal. O papel dos tribunais é resolver conflitos sociais concretos, através da aplicação de penas proporcionadas à culpa dos arguidos, não lhes cabendo realizar políticas criminais à revelia da lei.

    Os movimentos punitivos em que os tribunais se tornam arautos do povo são, apenas, uma das facetas de um fenómeno ambivalente. Trata-se, afinal, do mesmo fenómeno que conduziu a sentenças benevolentes, em nome de uma certa conceção moral ou dos costumes dominantes, nas situações de violação, maus-tratos, violência doméstica e homicídio passional.

    Novos paradigmas punitivos só podem ser opções do legislador – a Assembleia da República ou o Governo, mediante autorização –, através da criminalização de condutas e das medidas legais das penas. Não podem ser o resultado de processos intuitivos de seleção social da criminalidade, não permitidos pela Constituição e imunes ao controlo democrático.»

domingo, novembro 30, 2014

Prisão ilegal

• Fernanda Palma, Prisão ilegal:
    «(…) No caso de José Sócrates, a ignorância dos fundamentos materiais das decisões de detenção e de prisão preventiva impede qualquer juízo. Ora, tendo a defesa proclamado a ilegalidade da prisão preventiva, é urgente que as autoridades competentes nos informem dos seus fundamentos. Só assim conheceremos o Direito que nos rege, na sua interpretação viva.

    Já no plano do recurso do despacho que aplica uma medida de coação, não nos podemos esquecer de que o arguido tem de ser informado das circunstâncias de tempo, lugar e modo dos factos que lhe forem imputados. Na verdade, o artigo 194º do Código de Processo Penal exige que seja prestada informação dos factos concretos e das circunstâncias conhecidas.

    Tem de existir uma medida mínima de conhecimento para se poder falar de facto imputável em concreto. Foi essa ideia que levou o Tribunal Constitucional a julgar inconstitucional o entendimento de que bastaria uma atribuição genérica de factos, sem identificação de circunstâncias de tempo, lugar e modo, ainda antes da Reforma de 2007, no Acórdão 416/2003.

    Mesmo admitindo que essas circunstâncias não sejam exaustivas, a verdade é que elas têm de ser suficientes para a defesa poder exercer o seu direito. É essa a fronteira entre o processo acusatório e o processo inquisitorial, em que a acusação exige ao arguido uma prova diabólica, que não pode ser pedida pelo Processo Penal de uma sociedade democrática.»

sábado, novembro 29, 2014

domingo, outubro 19, 2014

Mulher de 50 anos

Shyznogud, Pérolas judiciárias

• Fernanda Palma, Mulher de 50 anos:
    «(…) Um tribunal administrativo acaba de proferir uma sentença em que reduziu uma indemnização de 172 para 111 mil euros, por entender que, aos 50 anos, "a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais precoces". Há 19 anos, uma mulher de 50 anos tinha sido vítima de erro médico que a tornou incontinente e incapaz de manter relações sexuais.

    O tribunal pretendeu desvalorizar uma ofensa grave à integridade que afetou a capacidade de fruição sexual, através do senso comum ("communis opinio"). Porém, a sua fundamentação é criticável, quer no plano moral quer no plano jurídico, mesmo que corresponda à opinião generalizada das pessoas (não acredito que suceda, sobretudo no caso das mulheres).

    Na verdade, a avaliação jurídica da gravidade de uma ofensa corporal não pode ser feita em função do grau de utilização da parte do corpo atingida, assim como a gravidade de um homicídio não diminui na proporção do decréscimo da esperança de vida. Uma ofensa que leve à cegueira, à surdez ou à paralisia não é menos grave num velho do que num jovem.

    A frustração da fruição plena do corpo poderá ser mais dramática para um jovem que ainda não teve oportunidade de se realizar. Todavia, a essencial (e igual) dignidade da pessoa humana, reconhecida logo no artigo 1º da Constituição, impede o Estado de fazer diferenciações sobre o valor da vida e do corpo em razão da idade, da esperança de vida e do estatuto social.

    Para além do penoso arrastar do processo durante 19 anos, o que choca mais nesta decisão é o modo como o tribunal administrativo fez eco de uma visão eugénica, que discrimina as pessoas mais idosas e, em última análise, as mulheres. É legítimo questionar se a solução seria idêntica em caso de incapacitação sexual que atingisse um homem de 50 anos.

    Nem sempre o que se toma por senso comum coincide com o bom senso. Neste caso, a divergência é óbvia e teria sido evitada se o tribunal tivesse integrado no seu critério decisório o sistema de valores constitucionais, como propõe Ronald Dworkin. Os valores da dignidade humana, da integridade, da liberdade e da igualdade teriam evitado esta discriminação.»