• José Pacheco Pereira, Costumes dos antigos [hoje no Público]:
- ‘O número de livros que se pode ler em vida é controverso e difícil de avaliar. Há livros e livros, uns maiores e outros mais pequenos, uns mais fáceis de ler e outros impossíveis de ler de forma recreativa, fluente, e que exigem uma leitura muito especial e naturalmente muito lenta. Algumas das maiores asneiras e demonstrações de ignorância que conheço são as afirmações presumidas sobre livros de que não se faz a mínima ideia o que são, muito menos lê-los.
Colecciono testemunhos de três asneiras, uma clássica, duas de pura ignorância. A clássica, chamemos-lhe assim, ocorre num romance "social" de Abel Botelho e diz respeito ao operário que tinha alimentado as chamas da sua "revolução", porque, numa noite de insónia, tinha lido o Capital de Karl Marx. Está-se mesmo a ver na mansarda esquálida, o jovem a ler sem sono à luz da vela ou do gás, o árido volume, presume-se que o primeiro, da complexa obra, que é o último texto que se pode considerar incendiário. Ainda dei o benefício de dúvida de que podia ser a edição resumida que Lafargue fez, mas mesmo assim não calha o livro com o "incêndio". O segundo exemplo foi uma aluna minha de Filosofia, num curso de adultos, que me jurou a pés juntos que, também na noite passada, tinha lido de uma assentada a Crítica da Razão Pura de Kant "inteirinha". Está visto que as noites devem ser particularmente excitantes para certos leitores, que lhes permitem ler de uma assentada várias centenas de páginas de um dos livros mais complexos da história da Filosofia. O livro então nem sequer existia em português e o seu fascínio intelectual só se apreende com uma leitura lenta, longa e quase de vida, e que implica o acesso ao vocabulário filosófico alemão, sem paralelo na sua capacidade conceptual. Chumbou, apesar da sua especialidade nocturna em Kant. O último exemplo foi a tentativa por alguns seguidores cheios de zelo, que queriam justificar uma referência de Passos Coelho a um livro que não existia, a "Fenomenologia do Ser" de Sartre, com uma confusão do leitor então muito jovem com o Ser e o Nada de Sartre, cujo subtítulo é Ensaio de Ontologia Fenomenológica. A mera ideia de que um adolescente, com "interrogações existenciais", teria lido o Ser e o Nada de Sartre, livro que os tais zelosos seguidores não faziam a mínima ideia do que fosse, ainda é mais ignorante do que a pobre aluna que tinha lido o Kant nocturno ou o operário inflamado por Karl Marx.’
2 comentários :
O Marcelo e o Passos que se cuidem com o Pacheco.
Isto ainda vai acabar mal...
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