quarta-feira, julho 20, 2011

Desvios colossais

• José Vítor Malheiros, Desvios colossais [ontem no Público]:
    'As coisas não são como devem, nem como parecem, nem como nos dizem que são.

    Entre as promessas da campanha eleitoral e a governação. Entre prometer que não haverá corte no subsídio de Natal, garantindo que fazer isso seria um "disparate", e decretá-lo passado umas semanas, declarando que se trata de uma medida indispensável.

    Entre a equidade que a lei e a simples decência impõem que exista no tratamento dos cidadãos pelo Estado e o facto de o imposto extraordinário incidir apenas sobre os rendimentos do trabalho, os únicos rendimentos dos mais pobres, isentando juros de depósitos, dividendos de acções e lucros de empresas, que são os rendimentos dos mais ricos.

    Entre a realidade do imposto extraordinário e as declarações feitas sobre o mesmo pelos partidos da direita:

    "É pedido um esforço maior a quem pode mais" (Luís Montenegro, PSD).

    "Quem aufere mais rendimentos suportará a esmagadora maioria da receita deste imposto" (João Almeida, CDS).

    Entre a justiça distributiva, que é uma das razões de ser do próprio Estado, e o primado da defesa dos privilegiados, que o Governo assume, cobrando o imposto extraordinário aos trabalhadores que ganham mil euros, mas esquecendo-se dos donos dos iates que ganham um milhão.

    Entre o rigor com que se conhecem, se controlam, se cruzam e se taxam os rendimentos do trabalho e a enorme dificuldade existente para conseguir detectar as "manifestações de fortuna" e cruzar os dados que dizem respeito aos mais ricos, que acabam por beneficiar, ano após ano, de uma amnistia de facto.

    Entre os impostos que deviam ser cobrados às empresas e aqueles que são efectivamente cobrados, devido a prescrições e aos esquecimentos vários a que a Inspecção-Geral de Finanças chama a "inércia dos serviços".

    Entre o dramatismo com que a direita constata o défice de 450 milhões de euros no Serviço Nacional de Saúde e a displicência com que acha que se deve tirar cinco ou dez mil milhões do bolso dos contribuintes para tapar o buraco do BPN.

    Entre o tratamento fiscal dado em geral aos mais ricos e o que é dado aos mais pobres, com o argumento de que o capital pode fugir do país e os trabalhadores pobres, esses, não fogem.

    Entre as juras de que a austeridade tem como único objectivo salvar o Estado social e o secreto desejo da direita de desmantelar o Estado social, de transformar os serviços gratuitos para todos em serviços pagos para alguns e de transformar os trabalhadores em proletários.

    Entre os impostos que pagam as empresas com sede em Portugal e as que instalaram discretamente as suas sedes na Holanda ou noutros paraísos fiscais, para poderem continuar a beneficiar das infra-estruturas pagas pelos contribuintes portugueses sem terem de contribuir para elas.

    Entre os compromissos de tantos políticos, que juram solenemente dedicar a sua vida à defesa da causa pública e a sua defesa das grandes empresas, onde esperam ser nomeados administradores depois de deixar o Estado.

    Entre a forma como os empresários gostam de se apresentar - geradores de inovação, defensores da concorrência, amantes do risco - e a realidade de muitos, embolsando os lucros quando as coisas correm bem e exigindo compensações aos contribuintes quando correm mal.

    Entre o que devia ser a separação partido-Estado e a realidade da proposta feita no PSD, de nomeação de comissários políticos nos ministérios para facilitar os contactos com dirigentes e autarcas sociais-democratas.

    Entre a indignação que as pessoas sentem por uma situação para a qual não contribuíram, mas da qual têm de pagar os custos e a indignação que deixam transparecer.

    Entre a indignação que as pessoas sentem e a que deviam sentir por estarem a ser empurrados para o patamar da mera sobrevivência nesta guerra civil que a ganância dos mais ricos trava contra a dignidade dos mais pobres.'

3 comentários :

João Ventura disse...

Duas mãos são pouco para aplaudir este texto!

maria ângela pires disse...

Certeiro e dramaticamente verdadeiro. Vivemos tempos de absurdo, mais do que 'guerra', pois na guerra todos sabem de que lado estão e para eles existe um sentido qualquer. Aqui, é o absurdo puro, porque as palavras e os actos vão em sentidos diversos e contrários. Tudo vale - afinal, pensando bem, é como na 'guerra'!Portugal não é 'lixo', mas está a deitar tudo o que é, ou devia ser, para o lixo.

Anónimo disse...

Apetece-me muito dizer : foram avisados.
Ninguém votou a 5 de junho sem ter sido avisado. Ninguém.
Só tenho pena daqueles que como eu não votaram em quem lá está agora mas lá terão de gramar mais dois anos de retrocesso á espera que se faça de novo luz nos olhos da maioria dos portugueses.