• Nicolau do Vale Pais, O coice da mula:
- 'A nossa opinião pública vive uma espécie de Síndroma de Estocolmo, um estado psicológico identificado por Nils Bejerot nos anos setenta, e que consiste numa reacção extrema de sobrevivência por parte das vítimas de sequestro, que se enfatuam pelos seus carcereiros, tentando subconscientemente aumentar as suas possibilidades de sobrevivência - chegam ao ponto de pôr em risco as próprias forças de auxílio, sabotando as manobras de salvamento. Foi isso que Bejerot - perito em psicologia do abuso - observou nos reféns durante o cerco montado aos raptores do Kreditbanken, em Estocolmo, precisamente.
A massa crítica portuguesa está tolhida desta forma. Nada prolifera em lado nenhum, porque o nosso sistema mediático é como uma mula: um híbrido, filho de espécies diferentes, resultante do cruzamento entre media e partidos. Cumpre, obediente, o seu serviço, mas é um híbrido e, portanto, por definição "biológica", estéril. Uma mula não gera mulas; para que nasça mais um espécime é necessário cruzar de novo a progenitura, repetindo o artificial processo. Dia após dia, telejornal após telejornal, líderes responsáveis pela situação, aspergem sobre nós o fel que resulta da sua própria culpa, em declarações tentativamente castradoras, graves, irresponsáveis. Ex-ministros, co-responsáveis, putativos futuros ex-qualquer coisa, todos tentam a intimidação: "temos de empobrecer", "a culpa é deste ou daquele grupo", "vivemos acima das nossas possibilidades", "temos de trabalhar mais", "temos de poupar mais", "temos de ser rigorosos", confundindo, com deliberado generalismo, os vícios exclusivos da classe liderante com a nossa sociedade como um todo. Auto-xenofobia, imoral diminuição de uma Cultura quase milenar como a nossa, é o que é. Na política-espectáculo, a sociedade transforma-se num circo onde as ideias ameaçam e a telegenia safa qualquer sacana.
Desresponsabilização cínica ou crueldade frustrada, esta é a legitimação de uma austeridade que, temo francamente, se destine exclusivamente à recapitalização das oligarquias político-empresariais, e jamais ao refundamento da nossa sociedade: é um coice extremamente perigoso, letal mesmo, o desta mula. Alguém há-de lhe chamar "sucesso", e colher os votos ou o que restar da sua importância.'
1 comentário :
Excelente!
A curto prazo, os coices da mula doem bastante e podem aleijar a sério.
Mas as longo, ou mesmo a médio prazo, as mulas serão todas abatidas, uma a uma, e não a coice, nem a tiro, mas pela purificação e desinfecção que só as chamas possibilitam.
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