terça-feira, janeiro 15, 2013

O relatório do Governo/FMI perante o SNS

• António Correia de Campos, O Relatório [ontem no Público]:
    ‘Não é difícil reconhecer na sua ambiguidade duas correntes ideológicas [no relatório do FMI]: as avisadas propostas do Memorando da troika, de Maio de 2011, saudadas por todos os que pretendem um SNS renovado e as velhas ideias do pacote mínimo e da privatização, importadas à força do livrinho Mudar, assinado por Passos Coelho.

    A primeira corrente exalta o sucesso do SNS Português de trinta anos de ganhos de saúde, acesso universal e equidade, reconhecendo o muito que se pode ainda ganhar em eficiência; identifica o desequilíbrio do mix profissional entre médicos e enfermeiros propondo a delegação para estes de funções de que os primeiros exigem posse exclusiva; saúda a substituição das horas extraordinárias por mais tempo regular, espera-se que mais bem retribuído; propõe o reequilíbrio da oferta de cuidados para agudos, para evitar a sobrecarga de hospitais com patologias ou necessidades mais bem assistidas em unidades de cuidados continuados e em cuidados primários; propõe melhor articulação entre a medicina familiar e os hospitais, reduzindo o afluxo de situações comuns às urgências, o que só se consegue com a generalização das unidades de saúde familiares ao meio urbano, sobretudo as grandes cidades; propõe a continuação do reagrupamento de unidades e do controlo dos gastos em medicamentos e meios complementares.

    A segunda corrente entende que o Estado social é um luxo que não pode ser consentido a europeus do Sul. Peca logo no registo estatístico: considera que o crescimento da despesa continuará a ritmo linear, ignorando a contenção observada na primeira década do século, onde Portugal controlou a 1,5% o crescimento médio anual entre 2000 e 2009, sendo o segundo país que mais forte contenção conseguiu, dentre os membros europeus da OCDE. Amedronta-nos com um crescimento projectado de 2,5 a 4,6%, entre 2010 e 2030, se não ocorrerem reformas. Pura impossibilidade. Elogiada já, no próprio relatório, a diminuição da despesa pública, realizada sem destruição do SNS, de 7% do PIB, em 2010, para 6,5% em 2011, apesar das perdas no produto, que melhor prova sobre a sustentabilidade do serviço público poderemos nós encontrar?

    O mais grave do relatório são as duas propostas políticas essenciais, pretensamente direccionadas para o controlo da despesa pública, para as quais não aduz qualquer grau de evidência: a concentração da gratuitidade num pacote básico de cuidados e o alargamento do papel do sector privado.

    O pacote básico de cuidados, designado no Relatório, em linguagem cifrada, como a "definição mais clara do âmbito e prioridades do conjunto de benefícios de saúde financiados pelo Estado, nomeadamente através de restrições na oferta ditadas pela disponibilidade orçamental" atenta explicitamente contra a Constituição. Quando esta define o SNS como universal e geral está a garantir que os serviços em que ele se desdobra são acessíveis a todos os cidadãos e que tais serviços são gerais, isto é, abrangem todo o leque de cuidados para cobrir necessidades de saúde. Se o SNS restringir a oferta de cuidados a um pacote básico está a violar também o princípio da universalidade ou equidade no acesso, uma vez que os menos afluentes terão uma elevada e inultrapassável barreira-preço a separá-los de cuidados que deveriam estar disponíveis para todos.

    O alargamento do papel do sector privado, tanto na prestação como no financiamento, vai muito para além da função complementar que ele exerce, cabendo ao Estado "disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o SNS". O Relatório propõe passar para o mercado, quer a prestação, quer o financiamento, pensando poupar nos serviços a prestar e transferir para o cidadão o pagamento de parte dos cuidados. A proposta claudica duplamente: não existe evidência, em Portugal, de que a prestação pelo mercado, com qualidade e severidade controladas, seja mais custo-efectiva que a prestação pelo SNS e a evidência internacional é abundante na demonstração de que os sistemas privados geram mais desperdício que os públicos, criam mais desigualdades e não garantem idêntica qualidade. Quanto à privatização do financiamento, o problema é ainda mais grave: o mercado segurador discrimina o acesso em função do risco, proporcional à necessidade do cliente, gera risco moral superior ao público e encargos administrativos e de comercialização acrescem, de modo ineficiente, aos custos de produção, tornando a indústria seguradora um negócio pouco atraente, ou mesmo um mau negócio. Basta ouvir as queixas das companhias.

    Finalmente, o Relatório do FMI, polarizado no controle orçamental de curto prazo, é omisso nas mais importantes e necessárias reformas a realizar no SNS: terminar com o conflito de interesses entre a prática pública e a privada, o qual encontra agora ambiente asado para solução política que torne prática exclusiva os internatos e o exercício de funções de direcção de serviços hospitalares. Por outro lado, torna-se necessário rever a gestão intermédia dos hospitais, responsabilizando as chefias intermédias através de liberdade de escolha de pessoal e de recursos, instaurando aí a retribuição por desempenho e abandonando de vez o recurso artificial a horas extraordinárias. Finalmente, haverá que encontrar solução justa para o inevitável aumento de encargos das famílias que resultará quer da extinção dos subsistemas, quer do aumento das taxas moderadoras. Antes de extinguir a ADSE e os subsistemas das forças militares e militarizadas, conviria criar uma mútua que assegurasse à classe média, profundamente atingida pelos cortes de ordenados, salários e pensões, o pagamento em regime mutualista, dos custos em que incorrem quando frequentam o SNS ou quando optam pela prestação privada. E já vai sendo tarde para esse trabalho.’

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