quarta-feira, janeiro 21, 2015

O estado da saúde e a saúde do Estado

• Alexandre Abreu, O estado da saúde e a saúde do Estado:
    «(…) É certo que, estatisticamente, pode sempre suceder que algumas pessoas morram enquanto esperam por serem atendidas - por mais curtos que sejam os tempos de espera. E é também certo que estamos a atravessar um surto de gripe que fez aumentar significativamente a afluência às urgências. Mas a interpretação do Ministro Paulo Macedo torna-se mais difícil de aceitar quando temos em conta o que têm sido as tendências do investimento público em saúde nos últimos anos. Quando o fazemos, observamos que está há vários anos em queda livre: segundo os cálculos de Eugénio Rosa, ter-se-á reduzido em 833 milhões de Euros entre 2011 e 2014 - cerca de -9% face ao início do período. Isto representa uma redução absoluta e relativa, pois como sabemos o PIB português reduziu-se no mesmo período, mas não tanto. Nesse sentido, é ainda mais claramente uma escolha política. O Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares afirmava em 2011 que "gerir um hospital é cada vez mais penoso" devido às restrições orçamentais - imaginemos o que dirá agora.

    Temos vindo a assistir a um desinvestimento público cumulativo e sistemático na saúde que, tal como tem sido indicado pela OCDE, tem sido parcialmente (mas não completamente) compensado pelo aumento dos gastos em saúde por parte das famílias. A despesa total com saúde tem vindo a diminuir, mas a despesa privada, das famílias, tem aumentado significativamente, com toda a iniquidade que está associada a esta alteração qualitativa: quem pode pagar, recorre cada vez mais ao privado; quem não pode, recorre a um Serviço Nacional de Saúde sujeito a um estrangulamento financeiro cada vez mais intenso.

    (…)

    As taxas moderadoras são, acima de tudo, um mecanismo de co-financiamento disfarçado sob uma capa de hipocrisia, pois nem sequer são assumidas enquanto tal. E se os montantes que estão em causa ainda não são, na maior parte dos casos, por si só impeditivos do acesso da maior parte dos utentes, não deixam de contribuir para a transformação da percepção das vantagens e desvantagens relativas do SNS e da oferta privada. Nas certeiras palavras de Sandra Monteiro no Le Monde Diplomatique, "avaria-se o Estado" através de cortes de financiamento e transferências de recursos, e contribui-se assim directamente para que a oferta privada floresça. E ela floresce mesmo, sem disfarçar a satisfação com os lucros alcançados nos interstícios cada vez maiores do que deveria ser um serviço universal de qualidade: as declarações da administradora do BES-Saúde aqui há uns anos, comparando a rendibilidade do negócio da saúde com a do negócio das armas, são especialmente despudoradas - mas são também verdadeiras e sintomáticas. (…)»

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