• Fernanda Câncio, Contre-plongée:
- «É um homem negro, num esgar de últimas forças, agarrado a um barco de borracha por uma corda, num mar azul. A fotografia, em plongée - francês para mergulho, termo técnico para uma imagem "de cima" - é a capa de terça do jornal i, que titula: "Esta vida vale o mesmo que a nossa."
À primeira vista (e segunda e terceira) toda a gente acha que a foto é de um dos três naufrágios ocorridos na última semana no Mediterrâneo. Mas, como logo denunciado nas redes sociais, a foto foi capa da revista Refugiados, da ONU, em 2002. Há, claro, a questão deontológica: usar uma foto de 2002 a propósito de um acontecimento de 2015 não é enganar o público? Não seria, se o i tivesse assumido (não assumiu) a data e explicado a escolha. Pena. E não só por básica honestidade; a data da foto é em si uma história - a história. Porque o que sucedeu esta semana não tem nada de novo, não foi denunciado pela primeira vez nem decerto é a primeira vez que morrem centenas (aliás, na verdade, ninguém sabe quantas centenas morreram agora). Expor numa capa tal deliberado engano para dizer "achas que é de agora? Pois é de há mais de uma década. Porquê então a comoção, os discursos de voz embargada, a cimeira especial?" seria, isso sim, chamar a atenção para cada uma das vidas em causa e para como nos são iguais umas às outras - e diferentes das nossas, das de quem delas se condói nas capas de jornais. Seria ouvir aquele homem que se salva por uma corda (salvou-se, sequer?) dizer-nos, em contra-mergulho: que importa se sou de 2002 ou de 2015, que te importo para além do breve momento em que, ao olhar-me, protestas os teus bons sentimentos?
Ironia então a legenda do i: aquela vida não valeu sequer dizer quando foi salva (?); não inspirou sequer dizer que é, em espelho, a nossa indiferença fundamental - e também, porque nada disto tem solução fácil e talvez não tenha mesmo alguma, a nossa fundamental impotência - que aquela capa, como os ramos de flores que acolheram alguns dos náufragos desta semana à chegada a terra, retrata. O que essas flores da nossa má consciência dizem é que ter viajado no barco que matou centenas, ter perdido talvez a família toda, visto morrer tanta gente e, quem sabe, matado alguém para sobreviver pode ter sido a sorte grande daqueles a quem são ofertadas: talvez se safem assim, talvez ninguém tenha coragem de os mandar para trás.
E não, não se diga que isto resulta de "políticas" e que a culpa é "dos políticos" que cortaram o financiamento das operações de vigilância, busca e salvamento e que agora se juntam para as proverbiais pungências. Num país e num continente em que ao mínimo pretexto se manda um imigrante "para a tua terra", e se tratam os negros e os "escuros" em geral, por mais europeus que sejam, como alienígenas enquanto se chora o "inverno demográfico", todas as lágrimas pelos afogados do Mediterrâneo são tão ingenuamente fraudulentas como a grande grande capa que, por engano, o i fez.»
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