sexta-feira, dezembro 04, 2015

Dias bonitos

• Fernanda Câncio, Dias bonitos:
    «"Está um lindo dia", diz a voz de homem. É de manhã e ele tem à frente mais de uma centena de funcionários da empresa que dirige. Estão ali para ser esclarecidos sobre o destino da dita. Porém, antes de começar um discurso de quase duas horas, o homem põe uma condição: só pode ficar quem garantir que confia nele: "Quem não confia pode ir já embora."

    Ninguém sai, aparentemente. E o homem prossegue, certificando ser um bom negociador, o que, explica, quer dizer "ser mais mafioso que os mafiosos." Os mafiosos, sabe-se de livros e filmes, fazem ofertas "irrecusáveis". As aspas em "irrecusável" advêm da essência do ser mafioso: a ameaça e a coação. Crimes, portanto. A dada altura, o homem diz àquelas pessoas que vão na sua maioria ser despedidas e têm de assinar um papel em que prescindem do pré-aviso. É que o pré-aviso, aduz, implica pagar mais um mês de salários, e esse dinheiro não existe. Devem pois acreditar nele e prescindir disso: será a única forma de os despedidos poderem receber as indemnizações, as quais só serão pagas se os que ficam se dispuserem a trabalhar num projeto que ainda não sabem qual é. Há pessoas, poucas, que timidamente questionam. Quantos vão ser os "dispensados"? "Dois terços." É possível não assinarem nada já? "Não, todos têm de assinar, ou acaba tudo aqui". No fim, o homem pede palmas para os acionistas que investiram no projeto e saíram "para não perderem mais dinheiro". Palmas há. E depois, quando ele diz que "vai descansar um bocado", há mais. Palmas.

    Sabemos isto porque o homem mandou gravar o plenário - di-lo no início da conversa - para, supostamente, as pessoas poderem "levar para casa e ouvir". A seguir, a gravação foi colocada no site da empresa. Não sabemos se foi pedida aos trabalhadores autorização para tal; não se percebe qual o objetivo. Quiçá o homem tem orgulho no que fez; deve tê-lo, porque, como refere várias vezes, a mulher e filhos estão ali, a assistir.

    Isto, que parece mentira, não se passou numa empresa têxtil, nem no Bangladesh. Passou-se numa redação em Portugal. A do Sol e i, jornais que vão fechar este mês. Quem ali estava eram, portanto, jornalistas. E o homem, que se chama Mário Ramires, já foi jornalista também. Jornalistas - esses profissionais dos quais se exige que saibam duvidar, perguntar, sindicar todos os poderes, resistir a pressões, ser independentes, pugnar pelo bem público e pelos direitos das pessoas e só se guiarem pelo seu código deontológico e a sua consciência. Heróis de fábula, em suma - ou que pelo menos façam por distinguir o certo do errado, o legal do ilegal, não aceitando a primeira patranha. Ocorreu isto na mesma semana em que a TV do Correio da Manhã passou imagens dos interrogatórios do ex ministro Miguel Macedo e do ex diretor do SEF Manuel Palos. Como se fosse a coisa mais normal do mundo. E se calhar é, num mundo em que estas coisas acontecem e tanta gente - a começar pelos jornalistas - parece achar normal.»

10 comentários :

Júlio de Matos disse...

«Jornalistas - esses profissionais dos quais se exige que saibam duvidar, perguntar, sindicar todos os poderes, resistir a pressões, ser independentes, pugnar pelo bem público e pelos direitos das pessoas e só se guiarem pelo seu código deontológico e a sua consciência. Heróis de fábula, em suma»:

Lamento confirmar que ESSA FÁBULA NUNCA PASSOU DISSO MESMO.


«(...) - ou que pelo menos façam por distinguir o certo do errado, O LEGAL DO ILEGAL, não aceitando a primeira patranha.»

Lamento informar que ISSO é tão importante, que não pode ficar nunca a cargo da consciência de NINGUÉM, jornalista ou simples Cidadão honesto e cumpridor. Tem de ser UM DEVER IMPERATIVO, IMPOSTO PELA FORÇA DA LEI!

Tal como, por exemplo, a obrigação de cumprir o Código da Estrada. E mesmo assim ainda há tantos mortos...

QualquerUm disse...

Coincidências do catano...
Tudo isto acontece a seguir às eleições, com a queda dos pafs.

Pedro Carrilho disse...

não foi no bangladesh mas foi numa empresa de angola que é similar ou pior, e não foi com operários do têxtil mas foi com pseudo jornalistas que agora provam um pouco do seu próprio governo, não fizeram eles a apologia dos pafiosos neoliberais que era preciso despedir, cortar salários, não se ter espinha dorsal, ser-se bufo do colega do lado para preservar o posto de trabalho, então agora podem sentir in loco todo o espelendor e virtuosismo da sociedade que defendem para os outros!

Anónimo disse...

Trabalharam todos num projeto comum...promover o assassinato político do Sócrates e levar até ao fim uma campanha eleitoral para beneficiar a direito.

Agora podem ser descartados.
Cada vez está mais à vista que Portugal tem vivido em clima de golpe de Estado. Os interesses, as corporações e aqueles políticos em que está para nascer alguém mais sério....

jose GOEBBELS, Ministro da Propaganda, disse...




Pois. Só existiram mesmo foi para tentar concretizar A GRANDE GOLPADA!


Agora, intentos gorados, recolhem cabisbaixos às boxes, até à próxima tentativa (e erro...).

ricest disse...

FC escreveu «a crónica de uma morte anunciada».

Jose disse...

Não há gritos? Não há ranger de dentes?
Não há insultos aos exploradores capitalistas falidos? Será que não terão dinheiro lá em casa, nos off-shores, em algum lugar?
E passa-se isto após a gloriosa vitória eleitoral do socialismo/comunismo?
Que falta de realismo proletário!!!
Devia ser proibido por lei falir!

ARebelo disse...

Ou seja,"Roma não paga a traidores",embora e aqui,alguns justos paguem pelos pecadores...

Anónimo disse...

É de facto inacreditável que isto se tenha passado numa redação em Portugal.Inacreditável, com todas as letras. Já não são precisos, estão dispensados,não há trabalho? Não há? Ou já podem ser descartados?

Anónimo disse...

O trabalho sujo foi feito e não chegou. Deitados fora como papel amachucado.
Alguns inocentes pelo meio pagaram a ganancia , a soberba e a falta de ética de jornalistas muito bem pagos que agora são mandados colocar as barbas de molho, até a direita conseguir chegar de novo ao poder e gastar num mês um orçamento inteiro a pagar as bocas de aluguer do costume para debitarem merda nos jornais.
Para os jornalistas colaboracionistas, agora na perspectiva de "mudarem de vida sem pieguices" que aprendam rápido a lição.
Se bem que , o que nasce torto...